Um artigo bastante curioso, publicado
somente em A Centelha, em 1945, revista espírita há muito extinta, traz as
apreciações do pesquisador Canuto Abreu sobre seu encontro em janeiro de 1922
com Léon Denis na cidade de Tours, França. Veja a seguir:
"O que ficou mais gravado na minha
memória foi nosso primeiro encontro. Fui a Tours no dia 6 de janeiro de 1922. A
velha cidade francesa estava sombria e as luzes das ruas acesas, apesar de pleno
dia. O frio era intenso. Quando o auto destacou barulhento à porta de casa, na
Place des Arts, 19, estava uma senhora a entrar. Parou a ver quem chegava e foi
minha gentil introdutora. Conquanto informado por uma carta de Jean Meyer duma
próxima visita minha, Léon Denis não me aguardava naquele dia. De propósito
cheguei a Tours sem outro aviso para não dar ao venerando mestre o incomodo de
me esperar em dia certo.
A casa estava com algumas visitas. Falava-se
alto lá dentro, como em controvérsia. A senhora, que me fez entrar a seu lado,
deixou-me à entrada com mademoiselle Georgette, dedicada caseira de
Denis. E, enquanto esta me ajudava a despir o sobretudo, ela varou a sala
vizinha para me anunciar. A conversa animada cessou de súbito. Um moço alto e
magro espiou à porta. Logo outro senhor apareceu, vindo a meu encontro. Quando
acompanhado por ele entrei na sala da palestra, surgiu diante de mim um velho
de longas barbas, tendo ao lado a mesma senhora que me fizera entrar na casa.
Eu esperava um homem forte, alto, altivo, de bigode à Clemanceau e pince-nez.
Assim minha imaginação o fazia, pelo retrato em busto que ele me enviara em
1915.
Ali estava porém um homem de estatura meã,
delicado de corpo, de longas barbas brancas em flâmula de duas pontas, cabeça
meio pendida para a frente e para o coração. Estendeu-me a destra com um
sorriso acolhedor. Avancei comovido ao seu encontro. Foi estreito e afetuoso o
amplexo que me deu. Lembro-me que meu coração batia fortemente e sua barba
roçava meu rosto quando ele disse distintamente: – Mon cher ami! Antes
e depois desse encontro ouvi de muitos lábios a mesma expressão de amizade tão
comum na França. Nenhuma, entretanto, ficou gravada tão indelevelmente na minha
lembrança. Sentado a seu lado depois das apresentações aos presentes,
conversamos longamente. Era ele o mais indagador. Inquiria, perguntava,
interpelava. Levou o assunto para a doutrina espírita no Brasil. Sua divulgação,
seu caráter cristão, suas curas notáveis. Citou nomes amigos: Leopoldo Cirne,
João Lourenço de Souza, Antonio Alves da Fonseca... Perguntou se Guillon
Ribeiro descendia de franceses. Quando lhe disse que Depois da morte,
traduzido por Lourenço Souza já estava no quinto milheiro, ele prontamente me
retificou. Sabia bem quanto andava a edição de seus livros no Brasil, porque
recebia exemplares toda vez que uma aparecia. Acrescentou que na França a 55ª
edição já havia sido lançada e no prelo se encontrava a décima de O
grande enigma.
– Estou agora fazendo a revisão das últimas
páginas de O problema do ser [do destino e da dor]. Eu
o arrumei, extraordinariamente, com um estudo retrospectivo de tudo quanto
apareceu de Allan Kardec para cá. Espero ter sido quase completo.
– E tem em vista publicar alguma obra nova?
– Sim, se Deus me der vida. Trabalho em
diversos assuntos. Terminei O espiritismo e a arte, que será
publicado seguidamente pela Revue Spirite. Estou agora escrevendo
sobre o espiritismo e o socialismo.
– São assuntos palpitantes, que os
brasileiros estimarão muitíssimo.
A admirável operosidade de Léon Denis
Verdadeiro
apóstolo, nunca deixou de escrever, de falar, de propagar, de praticar.
Trabalhou incessantemente até o fim. Para se ter uma ideia da sua operosidade,
basta recordar o que foram seus últimos dias, sua derradeira semana. O inverno
de 1927 foi muito rigoroso e Léon Denis quase não saía de casa. Quando o fazia,
era para ir à tipografia.
Trabalhava pela manhã na coordenação e
redação de seu novo livro: O gênio céltico e o mundo invisível,
ansioso por terminá-lo. Ao entrar a primavera, começou a receber as primeiras
provas, que sua secretária mademoiselle Baumard lia em voz alta e
corrigia de acordo com ele. Com o pressentimento de estar próxima a sua
passagem, exigia da secretária trabalho mais intenso e rápido. “Tenho pressa”,
explicava. Começaram, porém, os íntimos a perceber que ele decaía fisicamente.
Georgette, quando o ajudava a mover-se dum ponto para outro, notava que estava
mais lerdo, mais trêmulo, mais irritadiço.
No dia 5 de abril, ao deixar a casa, a
secretária sentiu a mão do mestre febril e comunicou discretamente a Georgette
sua preocupação. No dia 6 pela manhã o encontrou aparentemente bem disposto.
Ouviu e corrigiu provas até o almoço. Principiou a comer alegremente, como de
hábito, mas de repente engasgou-se e tossiu.
Qualquer coisa o incomodava na garganta. Após
curto intervalo, tentou novo bocado e teve dificuldade de engoli-lo. Desistiu
do almoço e levantou-se um tanto preocupado, aparentando calma. Andou pela
sala, tossindo de vez em quando, arrumando a garganta, que teimava em arder.
Sentindo falta de ar, foi até a janela e
inspirou lentamente uma boa porção. Por traz dele as duas senhoras viam que ele
sofria. Era conveniente avisar o médico. Georgette propôs-se-lhe chamar logo o
facultativo. “Deixe-se disso” foi a réplica. “Estou apenas resfriado; uma
pequena gripe de primavera. Ela sempre me vem ela garganta”. O dia todo passou
deprimido e febril, mas trabalhando. Cada vez tinha mais pressa de findar a
revisão da obra em prova. A noite foi de vigília para Georgette. No dia
seguinte principiaram cedo as visitas de amigos. Sabiam que era imprópria a
hora, pois o mestre trabalhava pela manhã. Mas estavam todos preocupados.
Apesar da febre, do ardor da garganta, da dificuldade em beber e comer, teimou
em trabalhar e não quis nem médico nem remédio. À noite sentiu-se mal. Não teve
sossego. Cedo chegou o médico. Após o exame, recomendou-lhe permanecesse no
leito e se medicasse “para sarar logo”. Mas aos íntimos, o doutor se mostrou
reservado no diagnóstico. “Por enquanto uma traqueíte e bronquite. E depois?”
Apesar de deitado, Denis continuou a ouvir a
leitura das provas e a corrigi-las. Na sexta-feira, 8, quando Mlle Baumard
chegou, lá o encontrou de pé, preparado para o trabalho. Recebeu amigos,
dizendo-lhes achar-se melhor. Georgette o desmentia em segredo a todos.
Notava-se francamente o acabrunhamento do mestre. Quando o médico saiu, revelou
aos de casa que era uma angina. No sábado, Denis não conseguiu erguer-se do
leito. A secretária recusou-se amavelmente trabalhar junto dele. O médico
verificou tratar-se duma pneumonia. Foi um dia horrível para o doente e para
todos. Mas o trabalho de revisão continuava, pois assim queria ele. No domingo,
primeiro da semana santa, já ninguém duvidava do próximo desfecho. Respirava
com dificuldade, gemia um pouquinho, tinha dores. Percebeu que estava
desprendendo-se. Todavia procurava reanimar os que o rodeavam.
Falando com dificuldade, mas completando
sempre o pensamento, pedia que a secretária “andasse” com o trabalho. Vendo a
seu lado Gaston Luce silencioso e triste, disse-lhe com um sorriso: – Ça ne
vaut pas Montmartre, hein Luce? Referia-se ao banquete que, em Paris se
realizava após o encerramento do Congresso Espírita, e durante o qual, como um
ídolo, Denis fora o centro das atenções dos crentes que haviam acorrido ao
concílio. Continuando a conversar, contou algumas passagens de sua vida, entre
as quais uma anedota quando visitara o Caíde de Cabilia, no deserto. Você me
disse que pretende escrever alguma coisa a meu respeito. Não se esqueça dessa
anedota”, disse a Gaston. No dia 10, seu estado era desesperador. Mas pediu-lhe
trouxessem o jornal La Depêche e solicitou a Madame Chauvigné
lhe lesse alguma coisa. Sua preocupação máxima era, contudo, o livro cujas
provas ainda não estavam todas corrigidas. Por fim, a secretária declarou
terminada a tarefa! Foi um alívio imenso para o doente. Chamou Gaston Luce e
lhe recomendou: “Que esse livro saia à sua honra, sim Luce?”. Respondeu o discípulo:
“Esteja tranquilo, mestre, ele está acabado. Fique descansado. Não se incomode
mais. Eu darei o último passo”. Replica Denis: “Mas ainda não está finda a
biografia de Allan Kardec!”. Respondeu Luce: “Sim, já está”. Era uma informação
incerta, dada para tranquilizá-lo. Mas Denis sorriu, incrédulo: “Vamos! Escreva
logo. Em que ponto estávamos! Ah! Recordo-me. Vamos continuar agora”!”
Dois dias depois, na manhã de 12 de abril de
1927, Léon Denis começa a se desprender do corpo físico. Mademoiselle Baumard
tem nas suas as mãos do agonizante, que não cessa de lhe dar recomendações...
pelo futuro da doutrina espírita.
Acervo Correio Fraterno – edição 129,
setembro 1981.
(Texto publicado no jornal Correio Fraterno - edição 447 - setembro/outubro 2012)
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