Os Embaraços Cármicos e as Fortunas Malsãs


Por Aloízio Elias (*)

O presente artigo aborda a noção espiritista de Pluralidade das existências por meio de uma análise de caso. O texto apresenta e comenta a trajetória reencarnatória de Antero de Oviedo (Robbie Vitamil) em duas existências subsequentes narradas no romance Renúncia, autoria de Emmanuel e psicografia de Chico Xavier. O propósito do artigo ao trazer essa literatura para o seu eixo analitico e evidenciar os embaraços cármicos decorrentes da fortuna malsã, construida as custas do sofrimento alheio.

Quando o Cristo, em Mateus 19: 24¹ afirma que "é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino de Deus", está assinalando os desafios espirituais que a experiência no plano físico, vivida em meio ao dinheiro e ao conforto, podem impor a qualquer reencarnante. Certos relatos do plano espiritual confirmam os pressupostos dessa passagem biblica e cuidam de problematizar a relação que nós encarnados mantemos com os bens materiais que a fortuna pode comprar. Dentre as narrativas que abordam esse assunto e mais nos impressionam, destacamos a vida de Antero de Oviedo, personagem do livro Renúncia de Emmanuel, psicografado por Chico Xavier. Antero, um afeto agregado da família Vilamil, cumpre na trama a função de malfeitor perseguidor do casal Madalena e Cirilo. Os leitores de Renúncia, frequentemente, se lembram desse personagem por ser ele o mentor intelectual do plano que separou em vida física os pais da heroína Alcione.

Contudo, em nosso texto, observaremos a tragédia espiritual de Antero por outro angulo. Atentaremos para sua relação com os bens materiais, seu apreço por todo tipo de luxo. No rastro desse compromisso com a "boa vida" (o comer e o beber bem, o morar bem, o vestir-se bem), inevitavelmente, identificaremos o imperativo pessoal que o motivava a encontrar os meios, ainda que desumanos e/ ou desonestos, para acumular o capital que viesse a financiar seu estilo de vida faustoso. Afinal, Antero era um bon vivant com singular talento para o mundo dos negócios.

Importa lembrar que o capitalismo, em sua manifestação primordial, podia ser definido como uma forma de mercantilismo intercontinental. A burguesia europeia obtinha lucros aviltantes com a negociação de viveres e artigos exóticos obtidos na África, América e Ásia. Nesse mesmo fluxo de mercadorias pelos oceanos, também se encontrava o comércio macabro de pessoas escravizadas. Antero de Oviedo ergueu seu patrimônio com o comércio de negros e índios aprisionados na África e na Ásia, transformados em mercadoria cativa.

Vejamos o momento em que Federigo Izaza, espanhol experiente no comércio triangular entre América, Africa e Europa, lhe propõe investimentos ligados ao tráfico escravagista.

"Antero confessou o intuito de mobilizar os capitais trazidos da França, na perspectiva de bons negócios. Izaza, sem que ele percebesse, tem estranho brilho nos olhos argutos e exclama:

Pois veja que feliz acaso nos aproxima! É que tenho justamente em mãos o melhor negócio dos últimos tempos.

Como assim? interroga o rapaz, curioso.

Conheces o mercado de escravos para as colônias estrangeiras?

Em face da atitude de estranheza do interlocutor, Federigo prosseguiu animadamente:

É a negociação mais rendosa nos tempos que correm. Como não ignoras, o novo Continente necessita do braço escravo. Os emigrantes da Europa não poderiam atacar, sozinhos, o desbravamento do solo. As epidemias, as dificuldades, as florestas inóspitas, destruiriam os organismos delicados e, com alguns navios e poucos homens de confiança, é possível obter uma fonte de lucros ótimos, com esforço quase insignificante.

Mas... como? inquiriu o outro.

Bastam algumas naus corajosas que visitem periodicamente a Costa d'Africa.

Apenas isso?

Nada mais. A troco de pequeninas bugigangas, conseguimos elevado número de selvagens que, sem embargo do cativeiro, passam a gozar os beneficios da civilização. De modo que explicava Izaza na atitude egoísta do homem que deseja mascarar propósitos execráveis além de vingarmos transações lucrativas, ainda espalhamos numerosos benefícios entre os negros bárbaros, de costumes primitivos. [...] Acredito que chegas à Espanha em momento azado aos teus interesses, porquanto eu e meus irmãos necessitamos de um sócio capitalista para incremento de grandes iniciativas. Dispondo apenas de um navio, temos perdido ótimas oportunidades nos mercados mais rendosos. As colônias inglesas, francesas e portuguesas são grandes centros de consumo.

E o astuto amigo passava a minudenciar e encarecer a importância de lucros tão fáceis, seduzindo o companheiro para o risco das largas aventuras. As palestras renovavam-se durante toda a viagem, e, quando desembarcaram em Valência, Antero de Oviedo já estava convencido das vantagens do tráfico negro, decidido a entrar na empresa com todos os recursos disponíveis (Xavier 2006. 88-9.)

São muitos os perigos morais aos quais a alma está submetida quando se encontra fascinada pelo conforto. Primeiro porque custear a "boa vida" implica, na melhor hipótese, tornar o trabalho empresarial, ou a carreira profissional, uma prioridade absoluta, em detrimento das relações pessoais. O indivíduo magnetizado pelo luxo se torna um escravo da própria demanda de consumo; submete-se à lei humana que vincula a quantidade de capital ao nível de comprometimento com o trabalho remunerado. O caso se torna critico quando a dependência em torno do dinheiro adoece psiquicamente o homem ao ponto de sua percepção do que é ético ficar comprometida. O gosto demasiado pelo consumo de coisas caras prejudica os valores humanos, os laços de solidariedade se afrouxam e o próximo, pouco a pouco, se torna degrau a ser pisado, ou manipulado, por aquele que almeja a ascensão socioeconómica a todo custo.

Além da desumanização do outro (o escravo, a servo, o funcionário) sempre visto como mão-de-obra ou consumidor de bens e serviços, o homem sensualista, fascinado pelos deleites que o dinheiro garante, perde o bom senso, a prudência, o equilíbrio das emoções e passa a agir sob o constrangimento de forças difusas Explora e é explorado, fascina e é fascinado em nome de extravagancias que ele propõe como necessárias. Antero empregou a maior parte da fortuna nas aventuras do tráfico negreiro", segundo a expectativa de lucro fácil e farto sem cogitar quanto sangue e quantas lágrimas eram derramados para que a riqueza lhe chegasse às mãos.

A sede pelo dinheiro era tal que ele acabou "assinando compromissos de vulto com agiotas e financistas astuciosos e inflexíveis até se ver irremediavelmente comprometido com o mercantilismo da época. A contrapartida era buscada por ele nas "noitadas alegres, cheias de prazeres e de vinhos caros". Mesmo em suas relações familiares "não comentava senão as vantagens do ouro fácil. O certo é que, a certa altura, havia muito dinheiro para os divertimentos licenciosos".

Os recursos surgiam e fomentavam os valores que o conforto exigia até que, inevitavelmente, a fonte se esgotou. Antero começou a não honrar seus compromissos financeiros; o soberbo estilo de vida custava mais dinheiro do que os empreendimentos podiam lhe prover. O crédito na praça postergou a bancarrota por um tempo. No entanto, a conta dos seus excessos chegou e, em um dado momento, "os credores de D. Antero iam todos reclamar o pagamento de suas dívidas a um só tempo". Com a falência de sua empresa e o confisco de todos os bens, "Antero de Oviedo aparecera morto, em Madrid, junto à Porta de Toledo". Muitos comentavam que o jovem empresário "havia preferido o suicídio à ignominia do cárcere". O que Emmanuel passa a narrar, a partir de então, é típico em circunstâncias análogas à de Antero. Após o trágico desencarne, ele se reconheceu "em região de sombras compactas", reparando "com lágrimas de compunção a inconsciência de outrora". Queria ouvir voz humana, libertar-se daquele silêncio constrangedor, mas ocasionalmente tinha a impressão de estar ouvindo "ruídos confusos de gargalhadas escarninhas, deixando-o quase convicto de estar sendo espreitado por inimigos intangíveis".

Emmanuel apresenta a lamentável situação de Oviedo ao descrever que:

"Atemorizavam-no as reminiscências concernentes ao comércio e tráfico escravista. Revia as cenas torpes das embarcações negreiras, nas raras vezes que as visitara ao largo da costa africana. E ouvia as lamentações e o praguejo dos que se viam obrigados à separação dos entes queridos. Tudo lhe aflorava à mente dolorida com prodigiosa vivacidade e nitidez. [...] Tremia, chorava, aniquilava-se dentro da sua imensa dor. Todavia, o fato que mais o impressionava era ter a destra mirrada e um dos pés ressequido! A treva impedia-lhe a visão, mas, de quando em quando, pelo tato, com sensações dolorosas, ia compreendendo a singular anomalia" (Xavier 2006, 111).

Quando os tormentos na erraticidade completavam dois anos, o negociante imprevidente orou de forma comovente, pedindo a Deus "uma esmola de luz no seio das trevas que o envolviam". A resposta às suas súplicas veio através de uma visita. Dona Margarida Vilamil, sua mãe espiritual, surgiu oferecendo o colo consolador. A matriarca dos Vilamil propõe um questionamento consciencial ao perguntar-lhe: "Já refletiste nos resultados da empresa que tentaste no mundo?". Margarida, então, fala para Antero sobre a reencarnação como oportunidade ímpar de reparação e apuro da personalidade. Ela explica a ele que:

"O corpo carnal é tenda preciosa, na qual podemos corrigir ou engrandecer a alma, apagar as nodoas do passado obscuro, ou desenvolver asas divinas, por nos liberarmos a pleno espaço em busca dos mundos superiores. [...] O perdão do Pai, ao lavrador ocioso, está na repetição anual da época do plantio" (Xavier 2006. 112).

Dona Margarida, consolidando a sentença pedagógica, expôs a ele as condições cármicas que lhe possibilitariam a remissão dos seus débitos com a humanidade:

"Não terás a beleza física de outros tempos, nem a liberdade plena de movimentos, mesmo porque regressarás ao mundo para um esforço de cura; todavia, se bem souberes renunciar aos teus caprichos, ao terminar as futuras provas estarás reintegrado na harmonia espiritual para prosseguimento de novas tarefas evolutivas, na carne ou fora dela" (Xavier 2006, 113).

Um ano após esse encontro nascia o primogênito de Dolores e João de Deus, casal de negros cativos da poderosa família Estigarribias. O corpinho da criança revelava certas peculiaridades; além de problemas nos olhos, a criancinha tinha os pés "tortos e retraídos" e as mãos "apresentavam apenas dois dedos". Porque Dom Alfonso Estigarribias "não admitia a existência de aleijados em seus domínios" exigiu-se que a criança fosse dada em adoção. Coube a Madalena e Alcione Vilamil, noutro tempo tão prejudicadas pelos atos infelizes de Antero de Oviedo, a tutela do bebezinho batizado com o nome de Robbie. O menino deficiente, pobre e filho de escravos, era a reencarnação de Antero, o ambicioso apresador e negociante de negros. Um coração em condição compulsória de resgate cármico que agora seria educado pela mesma familia que um dia ele tanto fizera sofrer.

No mundo moderno/contemporàneo, regido pelas práticas economicistas, não temos mais escravocratas de carreira. Contudo, a exploração de seres humanos e das riquezas naturais dos países chamados periféricos permanece: movimentada por marcas famosas e CEOs ovacionados. Grandes fortunas do mundo globalizado se ergueram, e ainda se mantém, assentadas sobre a miséria das populações mais pobres. Os países e famílias que controlam o mercado internacional se valem da miséria alheia, remunerando mal os desvalidos da África e extraindo de forma não-sustentável os benefícios do solo e do subsolo. A República Democrática do Congo, por exemplo, fornece grande parte do litio que usamos nas baterias de nossos smartphones. Mas poucos de nós sabem que a ganância em torno do litio mora longe do Congo, em outros continentes, e tem sido favorecida pela guerra civil que espalha sofrimento e mata tantos congoleses diariamente.

Mas quem lucra com isso? Quais empresas e empresários? Ou melhor dizendo, quanto eu mesmo acabo sendo beneficiado por isso? Afinal, o meu acesso a esses mimos tecnológicos que utilizam o litio em suas baterias acaba pesando sobre os ombros de homens, mulheres e crianças oprimidos pelas injustas regras do mundo capitalista. Ficamos, portanto, a cismar: Quantos senhores do comércio escravagista do Colonialismo Clássico do século XVI reencarnaram, posteriormente, repetindo os mesmos erros na posição daqueles que exploraram a Africa neocolonial do século XIX? Também pensamos: Quantos reis europeus que parasitaram a África neocolonial estão hoje reencarnados na posição de mega empresários que se enriquecem com a exploração desse mesmo continente? Ainda não é descabido considerar que outros tantos escravocratas do século XVI, também exploradores do século XIX, se encontram reencarnados na África atual, vivendo na pobreza que um dia ajudaram a espalhar. Não seriam, hoje, algumas daquelas crianças em situação de penúria que aparecem nos nossos noticiários internacionais os que escravizaram no século XVI e exploraram no século XIX?

Questionamos, por fim, isso: Em que circunstâncias cármicas dolorosas a reencarnação situará cada um desses grandes senhores do dinheiro, os barões da fortuna contemporânea, de modo que os mesmos consigam se libertar do cativeiro de Mamom?! Que processos educativos os redimírá? Pois, seja pela dor, seja pelo trabalho humanitário, uma coisa é inevitável... "O céu e a terra não passarão até que seja pago o último centil" (Mateus 24: 35)².

 

*Aluizio Elias

Colaborador do Grupo Espirita Euripedes Barsanulfo de Uberaba/Minas Gerais/ Brasil.

Fonte: https://cei-spiritistcouncil.com

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