Da Redação
Há 160 anos, em 17 de setembro de 1865,
acontecia em Salvador a primeira sessão espírita no Brasil, liderada pelo
jornalista Luís Olímpio Teles de Menezes. O evento marcou o início de uma
trajetória única: enquanto na França — berço de Allan Kardec — o espiritismo
permaneceu restrito a pequenos círculos intelectuais, no Brasil ele floresceu,
enraizou-se nas camadas médias e populares e se tornou uma das religiões mais
influentes do país.
Mas o que explica o sucesso do espiritismo
brasileiro e sua consolidação como uma das expressões religiosas mais
duradouras e adaptáveis da nossa cultura?
De
Lyon ao Brasil: o nascimento de uma doutrina
O espiritismo nasceu em meados do século XIX,
quando o pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail — que adotou o
pseudônimo Allan Kardec — começou a estudar os fenômenos mediúnicos conhecidos
como “mesas girantes”. Em 1857, ele publicou O Livro dos Espíritos, obra que
lançaria as bases da nova doutrina.
Kardec não via o espiritismo como uma religião,
mas como uma filosofia espiritual com método científico. Ele acreditava estar
apenas codificando ensinamentos transmitidos por espíritos superiores. O
espiritismo, portanto, unia ciência, filosofia e moral cristã, apresentando-se
como uma forma “racional” de compreender o mundo espiritual.
Contudo, a França do século XIX, marcada pelo laicismo
republicano e pela forte presença da Igreja Católica, não ofereceu terreno
fértil para o desenvolvimento de um espiritismo popular. Já no Brasil, o
cenário era outro.
A
chegada ao Brasil e a simpatia das elites
Quando o espiritismo desembarcou em Salvador em
1865, encontrou um ambiente religioso complexo. O país ainda era oficialmente
católico, mas havia uma ampla diversidade de práticas — do catolicismo popular
às tradições africanas e indígenas.
Segundo o antropólogo Bernardo Lewgoy (UFRGS),
o espiritismo atraiu, num primeiro momento, a elite urbana letrada, formada por
intelectuais e profissionais liberais. Essa camada via a nova doutrina como uma
alternativa “moderna” e respeitável, diferente do catolicismo dogmático, mas
ainda baseada em valores cristãos.
O caráter científico e racionalista do
espiritismo, aliado à sua dimensão moral e filantrópica, permitiu que a
doutrina ganhasse prestígio social. Além disso, os primeiros seguidores — em
geral brancos, instruídos e de classes médias urbanas — ajudaram a construir
uma imagem de respeitabilidade que favoreceu sua aceitação.
Da
perseguição à popularização
Embora a Igreja Católica tenha inicialmente
visto o espiritismo como uma ameaça, o movimento resistiu. Nas décadas
seguintes, a criação de centros espíritas, editoras, instituições de caridade e
o surgimento de grandes médiuns consolidaram a doutrina.
Entre os principais nomes que “abrasileiraram”
o espiritismo estão Bezerra de Menezes (1831–1900), Chico Xavier (1910–2002) e Divaldo
Franco (1927–2025). Eles foram fundamentais para popularizar a doutrina e
difundir uma imagem de espiritualidade acessível, caridosa e nacional.
Entre 1940 e 2010, o número de espíritas
cresceu de 460 mil para 3,8 milhões, um salto de mais de 700%, segundo o IBGE.
Nesse mesmo período, o espiritismo passou de um movimento de elite para uma religião
de massas urbanas, com forte penetração entre professores, funcionários
públicos, militares e profissionais liberais.
Por
que o espiritismo “deu certo” no Brasil
Especialistas apontam uma série de fatores para
explicar o êxito do espiritismo brasileiro:
Sincretismo
religioso – O Brasil sempre foi um terreno fértil para a convivência de
diferentes tradições. O espiritismo dialogou com o catolicismo popular, com
práticas afro-brasileiras como a umbanda, e com crenças indígenas.
Plasticidade
doutrinária – A doutrina conciliou ciência e fé, tradição e modernidade,
nacionalismo e universalismo.
Ação
social e filantrópica – Hospitais, orfanatos e campanhas de caridade deram
legitimidade e visibilidade ao movimento.
Mediunidade
e comunicação espiritual – Elementos como psicografia e reencarnação
tornaram-se parte do imaginário popular, difundidos por livros, novelas e
filmes.
Essa combinação de racionalidade e emoção,
caridade e espiritualidade, fez do espiritismo uma religião profundamente
adaptada ao modo brasileiro de viver a fé.
E
no resto do mundo?
Fora do Brasil, o espiritismo não encontrou as
mesmas condições.
Na França, prevaleceu o laicismo; na Alemanha,
Inglaterra e Estados Unidos, a força do protestantismo limitou seu avanço; e em
países católicos como Espanha, Itália e Portugal, a Igreja manteve rígido
controle sobre as práticas religiosas.
Mesmo em outras nações da América Latina, com
histórias coloniais semelhantes, o espiritismo não prosperou da mesma forma,
muitas vezes rotulado como “ocultismo” ou “bruxaria”.
O
espiritismo hoje: declínio ou transformação?
O Censo 2022 apontou uma queda no número de
espíritas declarados no Brasil: de 3,56 milhões (2,2%) em 2010 para 3,18
milhões (1,8%). Ainda assim, a Federação Espírita Brasileira estima que cerca
de 30 milhões de brasileiros simpatizam com a doutrina.
Para Lewgoy, a redução numérica não representa
uma crise, mas uma “metamorfose civilizacional”. O espiritismo, segundo ele,
está deixando de ser uma religião de massas para se tornar mais concentrado
entre as elites intelectuais e profissionais — mantendo, porém, grande
influência cultural.
De fato, os dados do IBGE confirmam o perfil: 48%
dos espíritas têm ensino superior completo, e 96% têm acesso à internet — muito
acima da média nacional. O espiritismo continua sendo uma força intelectual,
editorial e cultural, mesmo com menos adeptos formais.
Já a historiadora Célia Arribas (UFJF) observa
que a ascensão das religiões afro-brasileiras e o avanço evangélico também
alteraram o panorama. Muitos que antes se declaravam “espíritas de umbanda”
hoje assumem explicitamente suas origens afro. Além disso, a falta de novas
lideranças carismáticas — como Chico Xavier — contribui para a diminuição da
visibilidade pública da doutrina.
Um
novo espiritismo para o século XXI
O espiritismo brasileiro vive um momento de
redefinição. Enfrenta a concorrência de movimentos evangélicos e a
secularização, mas mantém enorme impacto cultural e simbólico. Palavras como carma,
reencarnação e evolução espiritual fazem parte do vocabulário cotidiano, mesmo
entre não espíritas.
Como observa Lewgoy, o espiritismo pode estar antecipando
tendências pós-seculares, nas quais religião e ciência voltam a dialogar e a fé
se torna mais individual e reflexiva.
Mais do que uma religião com milhões de fiéis,
o espiritismo tornou-se um modo de pensar e sentir o mundo — uma herança
francesa que, no Brasil, ganhou alma tropical, sotaque nacional e um papel
duradouro na construção da nossa espiritualidade.
Pesquisa e Edição: Luiz Sérgio Castro
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