As Culturas em que “Ouvir Vozes” é Visto como Algo Positivo


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Por William Park – BBC News

Ouvir vozes é uma experiência mais comum do que se imagina. Décadas de estudos demonstram que uma quantidade surpreendente de pessoas, sem qualquer diagnóstico prévio de transtornos mentais, já ouviu vozes que pareciam vir de uma fonte desconhecida. Em alguns levantamentos, mais de 75% dos participantes relataram esse fenômeno.

Na psiquiatria ocidental, essas experiências são geralmente classificadas como alucinações auditivas — um dos principais sintomas de transtornos psicóticos, como a esquizofrenia. A estigmatização associada a essas condições faz com que poucas pessoas admitam publicamente ouvir vozes. No entanto, em diversas culturas, esse mesmo fenômeno é aceito, celebrado e até visto como uma dádiva.

 A influência da cultura na percepção das vozes

Segundo a antropóloga Tanya Luhrmann, da Universidade Stanford (EUA), as expectativas culturais moldam diretamente a forma como essas vozes são interpretadas. Em algumas sociedades, elas são consideradas mensagens de proteção ou orientação espiritual. Luhrmann, coautora do livro Our Most Troubling Madness (“Nossa Loucura Mais Problemática”), afirma que aquilo que em um país pode ser visto como sintoma de doença, em outro pode ser compreendido como experiência sagrada.

Nos Estados Unidos e na Europa, por exemplo, é comum que pessoas enlutadas relatem ouvir ou ver entes queridos falecidos — experiência que atinge até 80% dos entrevistados. Já para os indígenas achuar, no Equador, manifestações de parentes mortos são proibidas e vistas como ameaça à alma dos vivos.

Na Amazônia, diferenças de percepção também aparecem: os siona (Colômbia e Equador) entendem as alucinações como acesso a uma realidade alternativa, enquanto os shuar (Peru e Equador) acreditam que a vida cotidiana é uma ilusão, sendo a verdadeira realidade revelada justamente durante esses estados visionários.

 Experiências comparadas entre continentes

Um estudo comparando pacientes diagnosticados com psicose nos Estados Unidos, em Gana e no sul da Índia revelou diferenças marcantes.

 Nos EUA, os entrevistados descreviam as vozes de forma negativa, frequentemente associadas a críticas ou ameaças. Muitos não conseguiam identificar a fonte.

 Na Índia (Chennai), mais da metade relatou ouvir familiares, como pais e irmãs, dando conselhos práticos e até repreensões cotidianas.

 Em Gana (Acra), as vozes eram, em grande parte, entendidas como manifestações divinas, trazendo orientação espiritual e moral.

Um entrevistado ganense relatou: “Elas simplesmente me dizem para fazer o que é certo. Se eu não tivesse essas vozes, teria morrido tempos atrás.”

 Traços de personalidade e predisposição

Pesquisas indicam que duas características psicológicas podem explicar por que algumas pessoas lidam melhor com essas experiências:

 Porosidade – abertura para aceitar que pensamentos ou mensagens externas possam entrar na mente.

 Absorção – capacidade de imersão em experiências imaginativas, borrando as fronteiras entre o real e o interno.

Indivíduos com alto grau de absorção tendem a interpretar as vozes de forma menos ameaçadora e mais significativa.

 Implicações para o tratamento

Diferenças culturais também afetam o tratamento de transtornos psicóticos. Em estudo comparando pacientes da Índia e do Canadá, observou-se que os indianos apresentaram melhor funcionamento social e menos sintomas negativos, mesmo com medicações semelhantes.

Segundo o psiquiatra Ashok Malla, da Universidade McGill, fatores sociais e familiares têm papel decisivo. Na Índia, a forte rede de apoio familiar contribui para reduzir o isolamento social, o que pode favorecer a recuperação. No Ocidente, em contrapartida, a independência pessoal e as barreiras legais de confidencialidade podem limitar o envolvimento das famílias no processo terapêutico.

 Quando o “anormal” se torna “normal”

Antropólogos como Ruth Benedict e Jane Murphy já haviam registrado que, em diversas culturas não ocidentais, experiências semelhantes a alucinações auditivas eram aceitas e até valorizadas. Entre os egba iorubás, na Nigéria, por exemplo, ouvir vozes era algo relativamente comum e socialmente aceito.

Luhrmann ressalta que, em diferentes partes do mundo, é esperado que as pessoas se comuniquem com mortos, espíritos ou entidades invisíveis. Nessas culturas, ouvir vozes não é necessariamente sinal de doença, mas sim parte da vida espiritual.

 Reflexão final

A forma como interpretamos as vozes que ouvimos está profundamente ligada ao ambiente cultural em que vivemos. Se, no Ocidente, a tendência é patologizar essas experiências, em muitas outras culturas elas são vistas como um presente, um canal de comunicação com o divino ou uma forma de sabedoria.

Compreender essa diversidade de percepções pode ajudar não apenas a reduzir o estigma associado às doenças mentais, mas também a repensar os limites entre espiritualidade, saúde e cultura.

 

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