Por volta das 20h30 de 17 de setembro de 1865, em Salvador, capital
da Bahia, algumas pessoas reunidas pelo jornalista baiano Luiz Olímpio Teles de
Menezes (1825-1893) deram início a uma reunião povoada de muitas discussões e
reflexões sobre a vida pós-morte. Naquela mesma noite, o grupo, que também
evocava algum tipo de comunicação com os mortos, recebeu uma carta mediúnica de
um espírito que se apresentou como Anjo de Deus
O texto psicografado, recheado de mensagens de esperança e fé,
sensibilizou os participantes naquela que é considerada a primeira sessão espírita
e início oficial do espiritismo no Brasil. O encontro daquela noite na capital
baiana também celebrou o começo das atividades do Grupo Familiar do Espiritismo,
primeiro centro espírita brasileiro destinado à formação e disseminação da
doutrina no país. O dia 17 de Setembro de 1865, registrou Teles de Menezes, marcará
uma época feliz em nossa vida, e o deverá também ser nos fastos (anais) do
Espiritismo no Brasil. Professor, jornalista e funcionário público, Menezes era
considerado uma pessoa de grande cultura e muito respeitado na sociedade
soteropolitana, sendo um dos fundadores do Conservatório Dramático da Bahia, do
qual eram integrantes personalidades como Rui Barbosa.
Fluente em várias línguas, como inglês, francês, castelhano e
latim, Menezes era filiado a sociedades espíritas europeias e chegou a se
corresponder com mestres como Allan Kardec, que menos de dez anos antes, em
1857, havia publicado na França o seu Livro dos Espíritos, obra que consolidou
a doutrina na Europa e a irradiou para o mundo nos anos seguintes. O jornalista
baiano também traduziu o primeiro livro espírita no Brasil, Filosofia
Espiritualista, que vendeu mil exemplares em apenas um mês. Cercado da nata da
sociedade baiana, o grupo rapidamente passou a uma campanha de conquista de
novos adeptos. As obras de Kardec eram discutidas com paixão. E Teles de
Menezes enfrentou sem temor as iras e perseguições que, desde o início, atingiram
a nova doutrina, explica a escritora e historiadora Mary Del Priore, autora do
livro Do Outro Lado (Editora Planeta), sobre o desenvolvimento e trajetória do
espiritismo no Brasil e no mundo.
Em julho de 1869, Menezes fundou na capital baiana o jornal O Éco
D’Além Tumulo. Além de porta-voz do espiritismo no Brasil e responsável por
disseminação da doutrina, o veículo também era um meio de resposta aos ataques
da Igreja Católica, incomodada com a rápida ascensão do espiritismo entre os
brasileiros. Em 1867, uma Carta Pastoral assinada pelo arcebispo da Bahia, dom
Manuel Joaquim da Silveira, condenava severamente a prática e as ideias sobre
reencarnação e comunicação entre os vivos e os mortos. Em resposta aos ataques feitos
pela mão pesada da Igreja, Teles de Menezes escreveu uma carta de 82 páginas ao
bispo, em defesa das doutrinas do espiritismo.
POUCAS DIFERENÇAS
O tom adotado por Menezes, porém, foi ameno e conciliador,
destacando que ele próprio se as- sumia católico e que o espiritismo e o
catolicismo são a mesma Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, somente estão
mudados os tempos e as palavras. Além disso, para os fundadores, o espiritismo
era uma ciência – daí o fato de se colocar desde o início como uma doutrina com
caráter científico, religioso e filosófico – e que as divergências sobre
purgatório e inferno eram apenas de localização: em algum lugar do além para os
católicos e aqui na Terra para os espíritas. É justamente a ausência desse
embate religioso direto, como ocorre entre outras crenças, um dos motivos para
a ascensão e aceitação do espiritismo na sociedade brasileira, a partir da
segunda metade do século 19. A hostilidade católica foi vigorosa no começo, mas
havia também aqueles que entendiam a proposta como ecletismo espiritual.
Frequentavam-se as missas e procissões, assim como as lojas maçónicas, reuniões
positivistas e mediúnicas, sem necessidade de renúncia da religião oficial.
A adoção dessas teorias não implicava em rompimento com o
catolicismo, frisa Del Priore. O interesse em escrever um livro sobre o tema
nasceu do contato com diversas entidades ligadas ao espiritismo. Quando escrevi
sobre a Família Imperial, era recorrentemente procurada por autoridades espíritas
que perguntavam se eu ouvia as vozes dos membros da Família enquanto escrevia.
Obviamente, expliquei que os livros eram apenas resultado de pesquisas
históricas, mas o tema me cativou, explica a historiadora, autora de mais de 50
livros e fonte para diversos acadêmicos. Ao pesquisar o espiritismo, estudamos
parte importante da história social do Brasil, diz Mary.
Outro fator que contribuiu para o fortalecimento do espiritismo no
país, sobretudo nas camadas mais altas da sociedade brasileira, era a prática
comum da importação e disseminação das ideias, costumes e hábitos europeus,
principalmente entre a segunda metade do século 19 e as primeiras décadas do
século 20. Em especial, a influência da cultura francesa, em que o espiritismo
se consolidou a partir dos estudos e da dedicação do pedagogo Hippolyte Léon
Denizard Rivail, que adotaria o pseudônimo de Allan Kardec.
Os adeptos do espiritismo
eram pessoas com bom nível cultural e social. Esse fator foi preponderante,
pois eles seguiam as ideias difundidas por intelectuais franceses, como Victor
Hugo, explica Marta Antunes, vice-presidente da Federação Espírita Brasileira
(FEB). O autor de clássicos como Os Miseráveis e O Corcunda de Notre Dame é
considerado um dos precursores do espiritismo na França e foi citado pelo
próprio Kardec em algumas ocasiões. As ideias do iluminismo francês motivavam
muito a vida cotidiana à época e encontravam ressonância no espiritismo,
completa Marta.
Havia também as mudanças naturais na sociedade, que começava a se
modernizar. Já existia naquele período, final do século 19, uma sociedade
burguesa e de consumo. As famílias estavam se transformando e o processo de
urbanização se acelerava. Esse desejo de modernizar o Brasil, participar da
corrida pela eletricidade, telegrafia e consumo cria uma nova mentalidade nessa
burguesia, que vai adotar o espiritismo como prática, diz Del Piore, que também
destaca o papel da imigração nesse processo: Nas décadas de 60 e 70 (do século
19) o Brasil já estava bastante conectado com o resto do mundo e os navios e
vapores traziam gente de toda parte, principalmente da Europa. Recebíamos
também muitos jornais estrangeiros que já falavam desse movimento
espiritualista.
IDEIAS DA REVOLUÇÃO
FRANCESA
Os adeptos do espiritismo também estavam sintonizados com os ideais
de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, que motivaram a Revolução Francesa, e
defendidos por aqueles que eram favoráveis à instalação da República no Brasil
e libertação dos escravizados. Não à toa, a doutrina encontrou forte
ressonância nas faculdades de Direito, de onde saía grande parte da elite
cultural, política e social da sociedade brasileira.
"Os primeiros espíritas brasileiros tinham formação acadêmica.
Muitos, no início, eram bacharéis em Direito", diz o historiador Paulo
Rezzutti, autor de diversos livros que abordam a História do Brasil, como
Independência - A História Não Contada (editora Leya).
Na origem da doutrina espírita, havia, segundo Rezzutti, uma busca
pela análise racional e cientifica. "Havia o fenómeno, por exemplo, das
mesas girantes (que se moviam sozinhas), e buscava-se compreender esses e
outros eventos semelhantes. A doutrina católica e os dogmas não bastavam para
explicar esses acontecimentos diz o historiador.
Pessoas mais instruídas e com uma visão mais racional acabaram
encontrando na doutrina espírita vinda da França um caminho para sanar as suas
dúvidas. "Esse contato entre as ideias europeias e os brasileiros se dava
pela intelectualidade. Por isso, as ideias chegaram primeiro entre os mais
instruídos, nos casos os bacharéis de Direito, engenheiros e médicos",
completa Rezzutti.
Em uma época que a Igreja Católica não dava abertura a outras
religiões e exercia forte influência nas decisões do governo, Rezzutti conta
que acadêmicos de Direito de São Paulo e Recife se juntaram à causa do
espiritismo no Brasil, chegando a peticionar junto a dom Pedro II, em setembro
de 1881, para que o movimento espírita brasileiro não fosse perseguido pela
polícia.
"O imperador deu
prosseguimento à solicitação e a perseguição foi cessada", diz o historiador.
Ele lembra que até os dias de hoje os seguidores da doutrina espírita, segundo
dados do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, detêm os mais
expressivos indicadores de educação e renda. Em 2010, data da última análise
nesse quesito, os espíritas tinham a maior proporção de pessoas com nível
superior (31,5%) e os menores índices de brasileiros com ensino fundamental
incompleto (15%).
O movimento abolicionista contou
com grande participação e influência dos espíritas. Jornais como o O Éco D’Além
Tumulo abraçaram a causa de libertação dos escravos, que também contou com o
engajamento de espíritas influentes, inclusive na Corte. Destaque para o
professor Manuel José de Araújo Porto-Alegre, o barão de Santo Ângelo, amigo do
imperador e que viveu muitos anos na Europa, também a serviço do governo
imperial, do qual era entusiasta.
Muito próximo do espiritismo e da
homeopatia, Porto-Alegre, em determinada ocasião, por volta de 1857, alertou o
imperador acerca de uma mensagem que havia recebido em uma mesa espírita na
Prússia, onde exercia um cargo diplomático. Nela, consta que, caso dom Pedro II
não fizesse nada para abolir a escravidão, o Império brasileiro iria cair.
"Embora imperador fosse mais aberto do que a princesa Isabel para esses
assuntos, ele escuta com atenção a tudo isso, mas não toma nenhuma
atitude", ressalta Del Priore, lembrando que a abolição da escravatura só
viria em 1888.
Outro abolicionista de peso era o
médico, político e filantropo cearense Adolfo Bezerra de Menezes, que se
tornaria um dos principais nomes do espiritismo brasileiro. Para evitar uma ruptura
total e abrupta do sistema, Bezerra de Menezes era adepto da libertação gradual
dos escravizados e posterior apoio do governo aos recém-libertos, para garantir
a inserção dos ex-cativos na sociedade. Aos que temiam o colapso da economia
com o fim da escravidão, o médico citava o exemplo do Ceará, onde a seca de
1845 esvaziou as senzalas e obrigou os fazendeiros a contratarem mão de obra
paga e livre. Apesar disso, a economia cearense não sofreu qualquer dano.
CONTRADIÇÕES DE UM ESTADO LAICO
Bezerra de Menezes, conhecido por
suas obras de caridade em prol dos necessitados e conhecido como "médico
dos pobres", exerceu papel importante nos primeiros anos da República,
período em que houve recrudescimento da animosidade ao espiritismo. Após 1889,
os adeptos de Kardec ganharam novos inimigos. Não apenas a Igreja Católica
continuaria a persegui-los, mas o novo governo decidiu incluir no Código Penal
da jovem República a condenação das práticas espíritas.
Os positivistas, promotores do
movimento republicano, não acreditavam em teses espirituais e muito menos na
pluralidade de vidas do espirito. "Ao longo de mais de cinco anos, figuras
importantes do movimento espírita, como Bezerra de Menezes ou o senador
Pinheiro Guedes, encaminharam ao presidente Deodoro da Fonseca uma enxurrada de
cartas solicitando que se retirasse do Código a passagem que penalizava a
doutrina", registra Del Priore.
O governo se esquivava e procurava
amenizar a situação dizendo que a lei só se aplicava ao que chamava de baixo
espiritismo, cujo alvo principal eram os afro- descendentes praticantes de
religiões como o candomblé, cartomantes e videntes que se espalhavam pelas
cidades brasileiras, em especial a capital, o Rio de Janeiro. De 1891 a 1900,
conforme registrado no livro Do Outro Lado, cerca de trinta pessoas foram
processadas com base nos artigos 156, 157 e 158 do Código Penal, sob acusações
em sua maioria de curandeirismo, cartomancia e espiritismo.
Segundo Del Priore, a situação
revela as contradições da Primeira República. Apesar da garantia do novo
governo em adotar o estado laico, o próprio Código Penal promovia a perseguição
às pessoas simplesmente por professarem a sua fé. A situação desconfortável
perdurou até a reforma do Código Penal, em 1940, durante o governo Vargas.
CHICO XAVIER: O MÉDIUM BRASILEIRO
A partir da segunda década do
século 20, o espiritismo no Brasil foi muito marcado pelas atividades e
trabalhos realizados pelo médium Francisco Cândido Xavier (1910-2002), um dos
maiores e mais respeitados nomes da história da doutrina no Brasil e no mundo.
Mineiro de Pedro Leopoldo, desde a infância Chico Xavier afirmava conversar e
receber mensagens de seus amigos e guias espirituais, sendo o principal deles
um espirito chamado Emmanuel.
Durante sua vida, Chico Xavier
escreveu mais de 90 livros, que venderam milhões de exemplares. Jamais aceitou
receber direitos autorais pelas obras, pois dizia que eram ditadas por autores
desencarnados. Sua vida pública foi marcada pela prática da filantropia e ajuda
aos pobres, um dos preceitos básicos do espiritismo. Para os milhões de
seguidores da doutrina, um dos trabalhos mais preciosos de Chico Xavier foram
os milhares de cartas psicografadas de pessoas desencarnadas e entregues aos
parentes que procuravam o médium em seu centro espírita, na cidade de Uberaba,
no Triângulo Mineiro.
Diante de tudo isso, Chico Xavier é
considerado um dos maiores disseminadores, senão o maior, do espiritismo no
Brasil. Em 2010, o IBGE apontava que o país possuía 3,8 milhões de pessoas que
se declaravam espíritas.
A estimativa da Federação Espírita Brasileira (FEB) é que esse número
atualmente seja superior a 4 milhões, mas o número de simpatizantes pode ser
bem maior. A doutrina também é disseminada por meio dos cerca de 15 mil centros
espíritas cadastrados pelas federações espíritas estaduais.
Apesar de apresentar saúde frágil
desde a juventude, Chico costumava dizer, em diversas ocasiões ao longo da
vida, para não se preocuparem com o seu estado físico, pois ele só morreria -
ou desencarnaria, como preferem os espíritas no dia em que todos os brasileiros
estivessem muito felizes. Chico Xavier faleceu, aos 92 anos, no dia 30 de junho
de 2002, por volta das 19h30, na mesma data em que a Seleção Brasileira
conquistou o pentacampeonato mundial de futebol.
Fonte: Aventura na História
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