André Bernardo - BBC
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Professor francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, de 53 anos, usou pseudônimo Allan Kardec para assinar 'O Livro dos Espíritos' |
Paris, 1857. O professor francês
Hippolyte Léon Denizard Rivail, de 53 anos, estava prestes a colocar um ponto
final em seu mais novo livro quando se viu tomado por uma dúvida: usar seu nome
de batismo ou recorrer a um pseudônimo?
Sua mais nova publicação, O Livro dos
Espíritos, nada tinha a ver com os mais de 20 livros didáticos, de física,
química e matemática, que ele já tinha escrito e eram adotados em escolas e
universidades. Foi quando Rivail se lembrou de que, em uma das muitas sessões
mediúnicas de que participou, um "amigo espiritual de vidas passadas"
de nome Zéfiro havia dito que, na época do imperador Júlio César, entre 58 e 44
antes de Cristo, ele tinha sido um líder druida na sociedade celta. Seu nome?
Allan Kardec.
"O recurso do pseudônimo tinha a
vantagem de não expor Rivail numa época em que, embora a heterodoxia religiosa
fosse tolerada, sempre se corria riscos", explica Mary Del Priore, doutora
em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e autora de Do
Outro Lado - A História do Sobrenatural e do Espiritismo (Planeta,
2014). "Era também uma forma de proteger sua carreira editorial, sem dar
chance de retaliação por parte de instituições de ensino religioso que tivessem
adotado seus manuais".
Kardec levou quase dois anos para
concluir O Livro dos Espíritos. Em momento algum, se considerou o
"autor" da obra. Na melhor das hipóteses, era apenas seu organizador.
Não por acaso, a folha de rosto da primeira edição estampava a frase:
"Escrito e publicado conforme o ditado e a ordem de espíritos
superiores". Para realizar as "entrevistas com o além", Kardec
conheceu e fez amizade com mais de dez médiuns - termo criado por ele para
designar os "intermediários" entre os vivos e os mortos. Suas mais
assíduas "colaboradoras" eram as irmãs Julie e Caroline Baudin, de 14
e 16 anos, e Ruth Japhet, de 19.
Quanto aos "amigos invisíveis",
eram incontáveis: o filósofo grego Sócrates, o apóstolo e evangelista João, o
cientista americano Benjamin Franklin... "Por ser inaugural, considero O
Livro dos Espíritos, no formato de perguntas e respostas, a mais importante
obra de Kardec. As perguntas correspondem ao papel dele na publicação. Já as
respostas são atribuídas a 'espíritos superiores'.
Para os adeptos de Kardec, o livro é,
literalmente, 'dos espíritos'", explica Emerson Giumbelli, doutor em
Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
pesquisador do Núcleo de Estudos da Religião (NER) da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS).
O Livro dos Espíritos foi lançado no
dia 18 de abril de 1857 e, em apenas dois meses, vendeu todos os 1.500
exemplares da primeira tiragem. Três anos depois, uma segunda edição, revista e
ampliada de 501 perguntas e respostas para 1.019, chegou às livrarias. Logo, a
doutrina espírita despertou a ira da Igreja Católica que considerava a
necromancia, a suposta arte de adivinhar o futuro por intermédio dos mortos, um
pecado mortal.
Cena de filme sobre Kardec; em 1861, o bispo de Barcelona ordenou que 300 volumes do livro dele fossem queimados em praça pública |
Por essa e outras razões, jovens médiuns eram
internadas em hospícios e adeptos do espiritismo ameaçados de excomunhão. No
dia 9 de outubro de 1861, a intolerância chegou ao ponto de o bispo de
Barcelona, Antônio Palau y Termens, ordenar que 300 exemplares da obra fossem
queimados em praça pública.
Mas, apesar dos pesares, Kardec procurava não
se abater. Encontrava consolo no relato de leitores do mundo inteiro que
atribuíam a seu trabalho o fato de não terem tirado suas vidas em momentos de
desespero. "Afirmavam que só desistiram do suicídio por terem lido O
Livro dos Espíritos e entendido que a vida continua através dos
tempos.
E mais: que cada existência seria uma chance
de evolução. Uma chance que não deveríamos desperdiçar", afirma o
jornalista Marcel Souto Maior, autor de Kardec - A Biografia (Record,
2013), que deu origem ao filme homônimo, escrito por L.G. Bayão e dirigido por
Wagner de Assis. Com Leonardo Medeiros no papel-título, Kardec tem estreia
confirmada no dia 16 de maio.
Espiritismo à brasileira
Filho de pais católicos – o juiz
Jean-Baptiste e a dona de casa Jeanne –, Rivail começou a se interessar pelo
assunto por acaso. Ouviu falar do fenômeno das mesas girantes e, movido por
curiosidade e desconfiança, resolveu investigar. Estava convencido de que, por
trás das mesas que se erguiam do chão e se moviam em todas as direções,
encontraria fios, ímãs ou roldanas. "Só acreditarei se me provarem que uma
mesa tem cérebro para pensar e nervos para sentir", fez troça.
Em maio de 1855, Rivail saiu da casa de uma
senhora chamada De Plainemaison completamente atordoado. Não conseguira
desvendar, por meio de truques secretos ou traquitanas escondidas, o sobe e
desce das mesas. Mesmo assim, não desistiu. Passou a investigar outro fenômeno,
ainda mais intrigante: os cestos escreventes. Encaixado no fundo do cesto, com
a ponta virada para baixo, um lápis "respondia" às perguntas
formuladas pelos convidados em folhas de papel.
"Numa dessas sessões, em 30 de abril de
1856, a cesta se voltou para Rivail e, como se apontasse o dedo para ele, o
lápis escreveu uma mensagem enigmática: 'És o obreiro que reconstrói o que foi
demolido'", relata Marcel. Era a deixa para Rivail começar a organizar o
que viria a ser O Livro dos Espíritos.
Não demorou muito para o espiritismo
kardecista cruzar o Atlântico e desembarcar no Brasil. Por aqui, Kardec
conquistou inúmeros "aliados". Dois dos mais importantes são o
educador francês Casimir Lieutaud, que traduziu para a língua portuguesa, em
1860, Os Tempos São Chegados, a primeira obra espírita impressa no
Brasil, e o jornalista brasileiro Teles de Menezes, que fundou, em Salvador, o
primeiro centro espírita do Brasil, o Grupo Familiar do Espiritismo, em 17 de
setembro de 1865, e o primeiro periódico espírita do país, o Eco do Além
Túmulo, em 8 de março de 1869.
Até 2002, quando morreu aos 92 anos, Chico Xavier psicografou 459 títulos - e doou os direitos autorais de todos eles, com registro em cartório, para obras assistenciais |
"Por sua inteligência aguda, bom senso extraordinário e alma caridosa, quem merece o título de 'Allan Kardec brasileiro' é o Bezerra de Menezes", aponta Marta Antunes Moura, vice-presidente da Federação Espírita Brasileira (FEB), referindo-se ao "médico dos pobres" que, reza a lenda, teria doado seu anel de formatura a uma mãe para ela comprar remédios para o filho adoentado.
Outro nome de destaque na consolidação do
espiritismo no Brasil é Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier. Em 1932, aos
22 anos, lançou seu primeiro livro, Parnaso de Além-Túmulo, antologia
de 259 poemas assinados por nomes como Castro Alves, Olavo Bilac e Augusto dos
Anjos. Até 2002, quando morreu aos 92 anos, psicografou 459 títulos - e doou os
direitos autorais de todos eles, com registro em cartório, para obras
assistenciais - e 10 mil cartas - algumas delas chegaram a ser aceitas como
prova em tribunais.
"Inspirado na noção de santidade
católica, Chico Xavier adotou votos monásticos como modelo de conduta e
espiritualidade. Assim, ele se tornou referência moral não só para médiuns,
como também para os demais adeptos da doutrina. Essa construção do estilo
brasileiro de ser espírita, marcadamente católico, é o que chamo de espiritismo
à brasileira", explica Sandra Stoll, doutora em Antropologia Social pela
Universidade de São Paulo (USP).
O rastro de perseguição que a doutrina de
Kardec sofrera na Europa logo chegou ao Brasil. Já em 1874, o Jornal do
Comércio acusava o espiritismo de produzir loucos: "Uma epidemia pior que
a febre amarela", dizia um artigo da época. Em 1881, o bispo do Rio de
Janeiro, Pedro Maria de Lacerda, publicou um manifesto em que chamava os
seguidores de Kardec de "possessos, dementes e alucinados".
"Naquela época, o Brasil vivia sob os
ditames do Império, que tinha o catolicismo como religião oficial. Mas, mesmo
com o advento da República, a partir de 1889, a perseguição não cessou",
relata o sociólogo e advogado Maury Rodrigues da Cruz, presidente da Sociedade
Brasileira de Estudos Espíritas (SBEE). "Os ataques sofridos não
arrefeceram o movimento espírita brasileiro. Pelo contrário. Fortaleceram a
união de seus membros em torno da defesa da liberdade de culto e da
consolidação do espiritismo no país".
Mais vivo que nunca
No mês em que espíritas comemoram os 150 anos
da morte, ou melhor, do "desencarne" de Allan Kardec, sua doutrina
tem hoje, segundo dados do Pew Research Center de 2015, 13 milhões de adeptos
no mundo inteiro. Só no Brasil, são 3,8 milhões. Isso significa que, a cada
três seguidores de Kardec, um é brasileiro. Com isso, o maior país católico do mundo,
com 123,4 milhões de fiéis, segundo o Censo de 2010, passou a ostentar outro
título: o de maior nação espírita do planeta.
"O túmulo do Kardec no Père-Lachaise, em
Paris, é, sem dúvida, dos mais visitados. A qualquer dia e horário, há sempre
um brasileiro acendendo velas ou depositando flores no mausoléu", afirma
Reginaldo Prandi, doutor em Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e
autor de Os Mortos e Os Vivos (Três Estrelas, 2012),
referindo-se ao cemitério francês onde estão sepultados, entre outras
celebridades, o escritor Oscar Wilde, o músico Frédéric Chopin e o roqueiro Jim
Morrison. "A prática da caridade ajudou o espiritismo a ganhar força no
Brasil. Ainda hoje, centros espíritas organizam bazares, recebem doações de
alimentos e distribuem agasalhos no inverno".
O sucesso do espiritismo no Brasil, onde tem
mais seguidores do que na França, pode ser explicado, ainda, pelo processo de
"religiosificação" da doutrina no país. Essa é a opinião de Célia
Arribas, doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e
professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz
de Fora (UFJF). Se, na terra natal de Kardec, o espiritismo tinha caráter
majoritariamente científico ou filosófico; no Brasil, ganhou status de
religião.
"Ao reforçar o caráter religioso do
espiritismo, seus primeiros adeptos, oriundos de grupos socialmente
privilegiados, como médicos, políticos e advogados, viram nisso uma forma de
legitimar sua existência em solo brasileiro e escapar do Código Penal de 1890,
que estabelecia punições, como multa e detenção, para quem praticasse o
espiritismo", explica a socióloga.
Dados do último Censo apontam que, entre 2000
e 2010, o número de espíritas no Brasil cresceu 65%, passando de 2,3 milhões, algo
em torno de 1,3% da população, para 3,8 milhões, cerca de 2%. Mas, se o número
de fiéis é de 3,8 milhões, o de simpatizantes, segundo a Federação Espírita
Brasileira (FEB), pode chegar a 30 milhões. "Muitos não se assumem como
espíritas porque são católicos ou porque não enxergam o espiritismo como
religião", explica Célia Arribas, da UFJF.
"Há também aqueles que vão aos centros
atrás de alívio para alguma aflição pontual. É o que chamamos na sociologia de
'religião de clientela', um tipo de religiosidade de serviço que não cria
vínculos".
Mesmo tendo crescido tanto, o espiritismo
continua a ser uma confissão minoritária no país. Em número de adeptos, está
atrás de católicos (64%) e evangélicos (22%). "São a maioria da
minoria", define o sociólogo Reginaldo Prandi, da USP. "A doutrina
espírita não está preocupada em fazer proselitismo ou converter ninguém. Está
interessada apenas em fazer o bem e praticar a caridade".
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