O marxismo tem sido alvo de ataques por parte
de integrantes do movimento espírita ao longo do tempo, especialmente, nos dias
atuais. A falta de compreensão acerca do que efetivamente significa o
pensamento marxista, bem como a própria constituição subjetiva dos espíritas,
enquanto inseridos no contexto da sociedade capitalista,[1] são algumas das
causas fundamentais dessa triste realidade.
Em geral, os espíritas confundem o
materialismo histórico com o materialismo, em sua acepção vulgar – esse último
objeto da crítica de Allan Kardec -, demonstrando uma compreensão totalmente
equivocada do marxismo, o qual passa a ser apontado como uma “ideologia
nefasta”. Isso apenas é uma demonstração do horizonte tacanho no qual,
infelizmente – ressalvadas importantes exceções -, está inserido o grande
contingente dos espíritas em nosso país, distanciados dos avanços científicos e
culturais da humanidade, em total dissonância com as postulações do mestre
lionês, que, inclusive, chegou a asseverar de modo peremptório: “fé inabalável
é somente aquela que pode encarar a razão, face a face, em todas as épocas da
humanidade”.
Cumpre aqui tecer alguns esclarecimentos
acerca do caminho teórico marxista, ainda que de maneira bastante sucinta.]
Karl Marx, na leitura apresentada pelo
filósofo francês Louis Althusser – a qual foi objeto de estudo em meu livro
Marxismo, humanismo e direito: Althusser e Garaudy, publicado em 2018 pela
Editora Ideias & Letras- , é o descobridor de um novo continente ao
pensamento científico, ao fundar a “ciência da história das formações
sociais”.[2] Althusser apresenta a distinção entre ciência e ideologia. Sobre
esse ponto, inclusive, a contribuição althusseriana é fundamental, na medida em
que o filósofo francês desenvolve, a partir da junção de marxismo e
psicanálise, um estudo aprofundado e original da ideologia, demonstrando que
ela não é fruto das escolhas, mas se apresenta de modo a dar as próprias
balizas das escolhas individuais, operando no inconsciente e constituindo as
subjetividades. A ideologia impõe-se por meio de práticas materiais. Assim
sendo, em uma sociedade capitalista, cujo lastro reside na exploração da força
de trabalho do proletariado pela burguesia, a subjetividade humana é atravessada
pela forma mercantil e pelas demais formas sociais que dela derivam de maneira
direta ou indireta.[3]
Embora sem desconsiderar a importância
fundamental do pensamento espírita, podemos afirmar que o marxismo, em termos
amplos, prescinde do espiritismo, afinal, para o estudo da materialidade das
relações sociais, em uma sociedade capitalista, de cunho estruturalmente
exploratório, desnecessário se recorrer, em um primeiro momento, a explicações
de caráter espiritual.[4] A opressão sofrida pela grande massa da população,
desprovida do capital e apartada dos meios de produção, salta aos olhos e, para
que possam ser pensadas e desenvolvidas maneiras de se romper com a constrição
das formas sociais que permitem a perpetuação desse modelo social, não é preciso
que os seres do além-túmulo se façam presentes. Compete a nós, seres encarnados
nesse mundo, trabalharmos para destruir essa estrutura social apodrecida e
construirmos uma sociedade efetivamente liberta das agruras da exploração.
O espiritismo, por sua vez, ao postular um
caráter científico e, ao mesmo tempo, apregoar consequências morais em um
horizonte de justiça e fraternidade, precisa ter um olhar especial ao marxismo,
haja vista que este último se apresenta como um caminho teórico e prático de
transformação estrutural da sociedade. Podemos até mesmo afirmar que, em nosso
planeta Terra, os espíritas não devem prescindir, ao menos, do conhecimento do
marxismo, na medida em que ao espírita se faz mister uma preocupação efetiva
com as misérias desse mundo, diante da própria moralidade cristã, na qual ele
se fundamenta.
Cabe aqui recordar o mito da caverna narrado
por Platão e conclamar aos espíritas que saiam do mundo das sombras e passem a
enxergar a realidade social tal como ela se apresenta, despojando-se de noções
preconcebidas. Vivemos em uma época na qual muitos oradores espíritas
limitam-se a fazer exposições superficiais sobre as lições do evangelho ou a
tecer comentários sobre os mais variados assuntos, totalmente destituídos de
embasamento teórico e de verdadeira pesquisa. Dedicam-se também – a pretexto de
defender a figura do Cristo – a fazer críticas disparatadas a desfiles de
escolas de samba, julgando-os impróprios, esquecendo-se de problemas muito mais
prementes – como dos milhares que morrem à míngua por falta do mínimo
necessário para uma existência digna, em um contexto social de um
neoliberalismo exacerbado e da ameaça fascista que nos ronda -,
distanciando-se, dessa maneira, da própria essência da mensagem de Jesus,
assemelhando-se, assim, a fariseus modernos. A mentalidade do espírita e dos
religiosos, de modo geral, é aquela da caridade, ou seja, muitos restringem-se
a dar um pedaço de pão, um prato de sopa, uma cesta básica no final do ano. Ou
ainda, quando se dedicam a fundar instituições de assistência social de caráter
bastante louvável e até mesmo necessário, limitam-se a tratar a questão da
miséria de maneira individualista e pontual, sem procurar caminhos de combate
às causas que a engendram.[5] Cabe aqui recordar as palavras de Dom Hélder
Câmara, um dos mais lúcidos expoentes do catolicismo brasileiro: “Quando
alimentei os pobres chamaram-me santo, mas quando perguntei por que há gente
pobre chamaram-me comunista”.
O diálogo entre marxistas e cristãos já foi
empreendido de maneira notável, por ambos os lados. Os avanços nesse ponto
foram muitos. Na esfera do espiritismo, ainda há muito por se fazer nesse
sentido. Importante salientar que o espiritismo, embora não possa ser
classificado como uma religião propriamente dita, tem, em certa medida,
matrizes religiosas. Assim sendo, as contribuições originadas a partir desse
diálogo podem, em diversos aspectos, ser aproveitadas pelo movimento espírita.
Por fim, impende destacar que o espiritismo,
desde a sua fundação por Allan Kardec, caracteriza-se por ser um pensamento
aberto e não dogmático. A abertura kardecista à ciência, bem como a preocupação
social que subjaz a todo edifício teórico construído pelo espiritismo, ensejam
um campo fecundo de diálogo com o marxismo, na busca de uma sociedade
transformada.
[1]MASCARO, Alysson Leandro. Entre teoria e prática
na sociabilidade contemporânea: Pensamento Social e Espiritismo. Disponível
em:
<http://www.pampedia.com.br/abpe/Artigos%20site/ABPE_siteArtigos%20Pensamento%20social%20e%20espiritismo.pdf>.
Acesso em: 09 mar. 2018.
[2]“Para ser mais preciso, eu diria que Marx
“abriu” ao conhecimento científico um novo “continente”, o da história– como
Tales abrira ao conhecimento científico o “continente”da matemática, como
Galileu abrira ao conhecimento científico o “continente” da natureza física.
[…] Eu acrescentaria que, assim como a fundação da matemática por Tales
“provocou” o nascimento da filosofia platônica, assim como o nascimento da
física por Galileu “provocou”o nascimento da filosofia cartesiana etc., a
fundação da ciência da história por Marx “provocou” o nascimento de uma nova
filosofia teórica e praticamente revolucionária: a filosofia marxista ou o
materialismo dialético.” (ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Tradução de LOUREIRO,
Maria Leonor F.R.. Campinas: UNICAMP, 2015, p. 213)
[3]Sobre a questão das formas sociais e sua
imbricação com o modo de produção capitalista, ver a obra Estado e forma
política,de Alysson Leandro Mascaro (São Paulo: Boitempo, 2013).
[4]Interessante, nesse ponto, destacar as
observações feitas por Louis Althusser: “…o ateísmo é uma ideologia religiosa
(ateísmo como sistema teórico) e por isso o marxismo não é um ateísmo (neste
sentido preciso). […] o ateísmo como sistema teórico é sempre um humanismo […]
O Marxismo não é um ateísmo tal como a física moderna não é uma física anti-aristotélica.
[…] O marxismo trata a religião, o teísmo e o ateísmo do mesmo modo que a
física moderna trata a física aristotélica, lutando teoricamente contra ela
quando esta constitui um obstáculo teórico, combatendo-a ideológica e
politicamente, quando constitui um obstáculo ideológico e político.”
(ALTHUSSER, Louis. Polêmica sobre o humanismo. Tradução de Carlos Braga Lisboa:
Presença, 1967, p. 221-222).
[5]MAGALHÃES, Juliana Paula. Marxismo,
cristianismo e direito: as implicações do debate sobre o humanismo. Revista
Direito e Espiritualidade. Ano 3, n. 5, julho/dezembro de 2018. São Paulo:
Associação Jurídico Espírita do Brasil, 2018.
(*) Juliana Paula Magalhães
Doutoranda e Mestra em Filosofia e Teoria
Geral do Direito pela Faculdade de Direito da USP. Bacharela em Direito pela
mesma instituição.
0 Comentários