Por Alexandre De Santi e André Shröder
Quando Chico publicou um livro de poemas de
autores mortos, criou-se um dilema: as famílias dos escritores deveriam receber
pelos textos psicografados?
Nos finais de tarde, Chico Xavier
costumava frequentar o Açude do Capão, um local nos arredores de Pedro
Leopoldo. O médium passeava pela área para meditar e orar na sombra das
árvores. Numa tarde de 1931, Chico contou que viu a figura de um homem
simpático, que vestia túnica sacerdotal e que estava rodeado por fortes raios
luminosos. Os dois passaram a conversar, e o espírito disse que se chamava
Emmanuel.
A figura da roupa brilhante perguntou se
Chico estava disposto a colaborar com a difusão da filosofia espiritualista.
Emmanuel (pronuncia-se “Emmânuel”) garantiu que o jovem seria amparado por bons
espíritos, mas, caso aceitasse a missão, teria de demonstrar disciplina para
dar conta de uma missão ousada: psicografar 30 livros enviados do plano
espiritual. Segundo a história que Chico repetiu incontáveis vezes ao longo da
vida, foi assim que ele começou a conviver com o seu guia.
Livros e entrevistas de Chico Xavier – e de
outros autores espíritas – indicam quem Emmanuel teria sido em algumas das suas
encarnações. O espírito que guiou o médium mineiro até seus últimos dias de
vida teria vindo à Terra como um senador romano chamado Publius Lentulus
Cornelius, que teria lutado contra a corrupção em Roma, encontrado Jesus Cristo
pessoalmente e morrido vítima do vulcão Vesúvio, no ano de 79 (tal figura,
apontam os historiadores, jamais existiu).
Seja como for, Emmanuel teria voltado ao
mundo dos vivos um pouco mais tarde, no ano de 131, como um escravo de origem
judaica, preso e condenado à morte por ser fiel a Jesus. Mas a sua passagem
mais ilustre pelo planeta teria sido como Manuel da Nóbrega, o padre português
responsável pela catequização de indígenas brasileiros, também fundador da
cidade de São Paulo.
Teria sido nessa encarnação que o orientador
de Chico ficou apaixonado pelas terras tupiniquins. Em sua última temporada na
Terra, Emmanuel teria sido Padre Amaro, humilde religioso que viveu no Pará
entre os séculos 19 e 20, tendo contato com o expoente espírita Bezerra de
Menezes quando esteve no Rio de Janeiro.
Chico, enfim, partiu para a missão de
produzir 30 livros. Mas teve de superar uma série de graves problemas antes de
iniciar a tarefa. Em dezembro de 1931, o médium sentiu um desconforto no olho
esquerdo, como se grãos de areia arranhassem o globo ocular a cada movimento.
Ao consultar um especialista em Belo Horizonte, foi diagnosticado com uma
catarata obscura e inoperável. Aos 21 anos, ele estava praticamente cego de um
olho, com risco de perder a visão também do outro.
O tratamento era doloroso: injeções de corticoide
diretamente no local afetado, as quais provocavam incômodas hemorragias. Outro
obstáculo era encontrar tempo para psicografar. A madrasta Cidália Batista
tinha morrido meses antes. Chico prometeu a ela cuidar dos irmãos e ajudar o
pai a sustentar a casa, o que ocupava seu dia por inteiro. “Fiquei com 14
crianças, irmãos menores e sobrinhos. Não conseguia assumir o compromisso [de
psicografar] porque os problemas domésticos eram muitos”, relembrou Chico
Xavier décadas mais tarde.
Diante das dificuldades, o médium se viu na
companhia de um Emmanuel implacável. Chico disse que o espírito não aceitou seu
repouso de dois dias enquanto tratava os ferimentos no olho esquerdo. O médium
contou que, nesse dia, Emmanuel perguntou por que Chico não estava escrevendo.
Quando alegou que o olho estava doente, ouviu de seu orientador uma lição dura:
“E o outro, o que está fazendo? Ter dois olhos é um luxo”.
São inúmeros os relatos de Chico que revelam
um guia rígido, cujo papel principal não era oferecer consolo, mas cobrar
disciplina para que as obrigações espirituais fossem cumpridas. Depois que um
impactante caso de obsessão – irmãs que reagiam violentamente diante dos
frequentadores do centro espírita – provocou uma debandada de adeptos, Chico
sentou muitas noites sozinho à mesa para realizar sessões. Tinha recebido uma
ordem de Emmanuel para manter as leituras religiosas, fundamentais não só para
os vivos, mas também para os mortos ali presentes. Quando o médium cogitava
desistir de sua missão, o guia, segundo Chico, se enfurecia.
No início dos anos 1930, Chico Xavier ainda
era um médium desconhecido de uma pequena cidade do interior de Minas Gerais,
sem grandes conexões com líderes do movimento espírita do Rio de Janeiro e de
São Paulo. Essa situação mudou assim que o médium começou a psicografar poemas
supostamente enviados de outro plano por escritores já falecidos, o que
despertou interesse da cúpula da Federação Espírita Brasileira.
O grande salto na carreira de Chico foi dado
com a publicação de Parnaso de Além-Túmulo, seu primeiro livro, em
julho de 1932. A obra era uma coletânea de 60 poemas atribuídos a 14 autores
mortos – nove brasileiros, quatro portugueses e um anônimo. Entre eles estavam
nomes famosos como Augusto dos Anjos, Casimiro de Abreu, Cruz e Sousa, Olavo
Bilac, Castro Alves e Artur Azevedo.
A temática da antologia girava em torno das
visões dos poetas sobre como era a vida após a morte. Responsável pela
publicação, Manuel Quintão, à época presidente da federação, logo tratou de
defender a veracidade dos poemas psicografados pelo “rapaz de 21 anos, um quase
adolescente”, dizendo no prefácio que nem mesmo o mais intelectual dos
literatos era capaz de imitar tal produção.
Na abertura do livro, Chico se apresentou aos
leitores. Esclareceu que estudou apenas até o fim do curso primário, tendo
aprendido no período não mais que alguns “rudimentos de aritmética, história e
vernáculo”. Ele garantiu que nunca invocou os espíritos dos poetas famosos,
tendo recebido a série de poesias “a contragosto”, sem ter feito qualquer esforço
intelectual. O médium explicou que, ao colocar os escritos no papel, sentia a
sua mão impulsionada por outra. Outras vezes copiava os textos de livros
“fantasmagóricos”, que só existiam no além. Também escrevia versos ditados ao
seu ouvido. Afirmou que fluidos elétricos e vibrações indefiníveis invadiam seu
corpo.
“Certas vezes, esse estado atingia o auge, e
o interessante é que parecia-me haver ficado sem o meu corpo, não sentindo, por
momentos, as menores impressões físicas. É o que eu experimento fisicamente
quanto ao fenômeno que se produz comigo”, escreveu. O médium fazia questão de
deixar claro que não era autor dos poemas, apenas um intermediário. Para
mostrar que não escrevia em busca de dinheiro, seguindo os princípios da
mediunidade gratuita, Chico abriu mão dos direitos do livro, oferecendo tudo à
federação espírita para financiar ações sociais e o trabalho de divulgação da
doutrina.
Humberto de Campos, membro da Academia
Brasileira de Letras, falou sobre o trabalho de Chico em dois artigos publicados
pelo Diário Carioca logo após o lançamento. “Os poetas de que
ele é intérprete apresentam as mesmas características de inspiração e expressão
que os identificavam neste planeta. O gosto é o mesmo e o verbo obedece,
ordinariamente, à mesma pauta musical”, escreveu. Depois de apontar semelhanças
entre os originais e as psicografias, o escritor foi taxativo: Parnaso
de Além-Túmulo merecia a atenção dos estudiosos, para se descobrir o
que há nele de “sobrenatural ou de mistificação”.
Parnaso foi uma publicação
ousada – talvez a mais ousada entre os mais de 400 livros que Chico Xavier
viria a publicar em quase 70 anos de carreira. No entanto, o debate em torno da
obra explodiu mesmo em 1935, após a chegada da segunda edição, quase três vezes
maior, com 173 poemas atribuídos a 32 autores falecidos. Entre eles estava o
próprio Humberto de Campos, que tinha morrido em dezembro do ano anterior. A
polêmica dessa vez foi enorme. Pela primeira vez, o nome do médium mineiro
surgia nos jornais mais importantes do Brasil, em meio a debates acalorados.
Cada um dos poemas foi incessantemente
examinado pelos críticos, sempre ávidos em encontrar indícios de plágio, de
fraude. Esse objetivo, no entanto, logo se mostrou complicado. Críticos
ortodoxos, que consideravam a ideia da sobrevivência do espírito um delírio
religioso, classificaram a obra como pastiche, mera cópia do estilo literário
dos autores. Para eles, Chico Xavier não passava de um imitador exímio do
conteúdo e da forma dos falecidos. Mas como provar isso?
O caso do médium que psicografava escritores
mortos despertou interesse de jornalistas. Em maio de 1935, o repórter
Clementino de Alencar, do jornal O Globo, viajou até Pedro Leopoldo
no intuito de desmascarar Chico. O jornalista acompanhou por mais de um mês o
trabalho do jovem mineiro e realizou várias entrevistas com moradores da
cidade, espíritas ou não. Também remexeu em arquivos de mensagens manuscritas
por Chico e participou das sessões realizadas no centro Luiz Gonzaga. Na
primeira delas, viu o jovem médium escrever com desenvoltura – de trás para
frente – uma mensagem em inglês.
Viu surgir em folhas de papel dois poemas
atribuídos ao espírito de Olavo Bilac e outro a Augusto dos Anjos. Desconfiado,
o repórter testou Chico Xavier com perguntas difíceis sobre sistema monetário.
As respostas vieram em longos e elaborados textos assinados por economistas
mortos. Nas prateleiras da casa onde Chico morava com os irmãos, não havia
livros dos escritores e poetas presentes em Parnaso. A cidade de
Chico sequer contava com biblioteca.
As impressões de Clementino de Alencar foram
publicadas semanalmente no jornal, de modo que os leitores puderam acompanhar
passo a passo as investigações. No final da série de reportagens, o jornalista
descartava a hipótese de charlatanismo. “Torna-se cada vez mais remota a ideia
de fraude grosseira que tenha porventura surgido com as primeiras notícias
relativas ao jovem médium de Pedro Leopoldo”, afirmou. Para Chico, o material
produzido pelo jornal O Globo, com grande circulação em todas as
regiões do país, serviu como defesa e também como divulgação.
Outros interessados no caso também viram suas
crenças abaladas diante das habilidades do médium de Pedro Leopoldo. Nos anos
seguintes, a polêmica sobre Parnaso seguiu ganhando páginas dos
jornais. Em 1939, Agripino Grieco, crítico literário conhecido daqueles tempos,
acompanhou uma sessão de psicografia realizada na sede da federação espírita em
Belo Horizonte. Ficou surpreso com o que viu.
“Como crítico literário, não pude deixar de
impressionar-me com o que realmente existe do pensamento daqueles dois
autores”, disse em entrevista ao Diário da Tarde, ao analisar os
escritos atribuídos a Augusto dos Anjos e Humberto de Campos. No jornal Correio
do Povo, em 1941, o poeta gaúcho Zeferino Brasil – que, depois de morto,
também teria poemas escritos pelas mãos de Chico – concluiu: “Ou as poesias em
apreço são de fato dos autores citados e foram realmente transmitidas do Além
ao médium que as psicografou, ou o Sr. Francisco Xavier é um poeta
extraordinário, genial mesmo, capaz de produzir e imitar assombrosamente os
maiores gênios da poesia universal”.
O jornalista e escritor Mário Donato, em
artigo no jornal O Estado de S. Paulo em 1944, estava
convencido que não era Chico quem escrevia os poemas. Na falta de explicações
científicas sobre a psicografia, decidiu colocar tudo na conta do milagre. “É
milagre, e o milagre, não explicando nada, explica tudo. Pois se não admitirmos
que o caso é milagroso, temos que levar o Chico Xavier à Academia Brasileira de
Letras”, escreveu. Melo Teixeira, psiquiatra e professor da Universidade
Federal de Minas Gerais, que conhecia Chico pessoalmente, não acreditava na
tese de pastiche.
“Fazê-lo, como Chico Xavier o costuma, de improviso,
numa elaboração e redação instantâneas, sem segundos sequer de meditação para
coordenar ideias, passando em sucessão ininterrupta da prosa ao verso, da
página de ficção para a de filosofia, ou moral (…) é alguma coisa de
inexplicável, que não está ao alcance de qualquer imitador de estilos ou
amadores de contrafação literária”, escreveu no Diário da Tarde,
jornal mineiro, também em 1944. Para Teixeira, para fazer um pastiche digno,
seria preciso dedicação exclusiva, edições constantes, além de mil e um
retoques.
Os vários anos de debates em torno de Parnaso fizeram
Chico Xavier famoso. Foi devido aos relatos sobre as assombrosas capacidades
mediúnicas do mineiro que as primeiras caravanas do Rio e de São Paulo
começaram a chegar a Pedro Leopoldo, enchendo as sessões antes vazias no centro
espírita Luiz Gonzaga.
Em muitas noites, mais de 300 pessoas eram
atendidas. Chico indicava aos doentes as homeopatias que garantia terem sido
receitadas na hora pelo espírito do médico Bezerra de Menezes, o ícone do
espiritismo brasileiro do século 19, falecido em 1900. Chico Xavier
psicografava centenas de mensagens, segundo ele, enviadas por mortos para
consolar os familiares. O médium pedia aos visitantes que fizessem trabalhos de
caridade. E difundia o credo espírita por meio dos livros que indicava aos
interessados.
Chico, porém, só conseguiu alcançar a
disciplina exigida pelo guia Emmanuel quando o emprego no armazém de José
Felizardo ficou pela bola sete. O dono do mercado havia sofrido uma trombose no
cérebro, e a doença afetou as finanças do empório. Com o salário sofrendo
baixas, Chico teve de procurar alternativas de sustento e encontrou a vaga
temporária na Inspetoria Regional do Serviço de Fomento da Produção Animal, na
chamada Fazenda Modelo.
O armazém de José Felizardo acabou falindo no
segundo semestre de 1935. Rômulo, o administrador da Fazenda Modelo, era
espírita praticante e frequentava o centro Luiz Gonzaga. Com a falência do
mercadinho, agarrou a oportunidade de contratar Chico, que virou datilógrafo do
governo. O médium passava os dias escrevendo relatórios sobre cavalos e bois no
novo emprego. Rômulo era um chefe disciplinador que estava interessado no
trabalho do médium dentro e fora da repartição.
Tanto que passou a convocar Chico para as
sessões espíritas que ocorriam na sua casa todas as quartas-feiras à noite.
Além disso, ele organizou uma sala na própria residência onde o médium cumpria
um terceiro turno, psicografando os livros ditados do além.
Com o ambiente propício para a concentração, novas
edições de Parnasosurgiram com mais poemas inéditos. Alguns dos
textos já publicados foram revisados e até mesmo retirados da obra por
orientação, segundo o médium, de espíritos que atuavam como editores. O
principal deles era Emmanuel, a quem Chico dizia recorrer quando tinha
dificuldade para entender mensagens ditadas por autores mortos, recebendo do
seu guia instruções que o ajudavam a desenvolver seu talento. A sexta e
definitiva versão de Parnaso de Além-Túmulosó seria publicada em
1955, contendo 259 poemas de 56 autores diferentes.
As semelhanças com o tipo de linguagem dos
supostos autores surpreendem. Um desses casos é o do poeta Augusto dos Anjos.
Filho de família de proprietários de engenhos, ele nasceu no Engenho Pau
d’Arco, na Paraíba, em 1884. Formado em Direito, nunca exerceu a profissão.
Morando no Rio de Janeiro, começou a se dedicar às faculdades de português e
geografia. Em vida, só publicou um livro, intitulado Eu, em 1914,
misturando características do parnasianismo e do simbolismo. Morreu de
pneumonia logo depois, aos 30 anos.
Nos textos atribuídos ao falecido, Chico
Xavier reproduz, tal como Augusto dos Anjos, os versos com dez sílabas
poéticas, as aliterações (repetição de fonemas) e coliterações (repetição de
fonemas de um mesmo grupo fonético). Também introduz comparações a partir de
apostos ou vocativos, entre outros detalhes observados pelos especialistas.
Outro destaque de Parnaso são
os poemas atribuídos ao português Antero de Quental. Nascido em Ponta Delgada,
em 1842, o escritor foi um dos poetas realistas mais famosos do seu país.
Pertenceu à Geração de 70, um movimento acadêmico que queria renovar os ânimos
intelectuais no século 19, da política à literatura. Antero escreveu poesia e
ensaios filosóficos com influência de Hegel e do positivismo. Sofria com
transtorno bipolar, sendo sua carreira marcada por uma mudança de visão: era no
começo idealista e terminou pessimista. Deprimido, cometeu suicídio em 1891.
Nas mãos de Chico, Quental voltou com sua
poesia filosófica, conservando o mesmo tipo de acentuação e ainda o estilo de
rimas, de adjetivo com substantivo. Os poemas fazem uso de enjambements,
isto é, um encadeamento sintático entre versos. Analistas destacam ainda a
repetição de termos, o predomínio de acentos na sexta e décima sílabas
poéticas, bem como a angústia existencial como tema recorrente. No poema a
seguir, porém, surge uma característica comum à obra psicografada de Chico
Xavier. O médium é bem mais religioso que seus autores mortos. Veja.
Deus
antero de quental, por Chico Xavier
Quem, senão Deus, criou obra
tamanha,
O espaço e o tempo, as amplidões e as
eras,
Onde se agitam turbilhões de
esferas,
Que a luz, a excelsa luz, aquece e
banha?
Quem, senão ele fez a esfinge estranha
No segredo inviolável das
moneras,
No coração dos homens e das
feras,
No coração do mar e da montanha!
Deus!… somente o Eterno, o
Impenetrável,
Poderia criar o imensurável
E o Universo infinito criaria!…
Suprema paz, intérmina piedade,
E que habita na eterna claridade
Das torrentes da Luz e da
Harmonia!
À Morte
antero de quental, em vida
Ó Morte, eu te adorei, como se foras
O Fim da sinuosa e negra
estrada,
Onde habitasse a eterna paz do Nada
As agonias desconsoladoras.
Eras tu a visão idolatrada
Que sorria na dor das minhas
horas,
Visão de tristes faces
cismadoras,
Nos crepes do Silêncio amortalhada.
Busquei-te, eu que trazia a alma já
morta,
Escorraçada no padecimento,
Batendo alucinado à tua porta;
E escancaraste a porta escura e
fria,
Por onde penetrei no Sofrimento,
Numa senda mais triste e mais sombria.
Outro dos autores que Chico dizia receber era
Cruz e Sousa, o principal poeta do simbolismo brasileiro. Nascido em 1861, em
Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis, era filho de ex-escravos e
cresceu sob a proteção dos antigos proprietários, que bancaram sua educação.
Sofreu a vida inteira preconceito por ser negro. Chegou a ser nomeado promotor,
mas não pôde assumir a função por conta da cor da pele. Seus livros mais
célebres foram Missal e Broquéis, que o
consagraram como fundador do simbolismo brasileiro, com poesias musicais,
pessimistas, cheias de metáfora e com linguagem rebuscada.
Casou-se e teve quatro filhos, que morreram
todos de tuberculose, doença que também levou o poeta, aos 36 anos. Os textos
publicados por Chico mantêm o tom religioso e a ideia de sofrimento redentor
que marcam a última fase da carreira de Cruz e Sousa. Neles a morte segue como
tema recorrente, bem como a preocupação com as pessoas desassistidas e marginalizadas.
Os especialistas apontam ainda as semelhanças nos versos musicais, os sonetos
líricos com foco na subjetividade, a linguagem rebuscada e a sinestesia,
recurso que associa dois ou mais sentidos.
O escritor, jornalista e político maranhense
Humberto de Campos, responsável por esquentar a polêmica em torno de Parnaso,
nasceu na cidade de Miritiba, hoje chamada Humberto de Campos, em 1886. Fez
sucesso com crônicas e entrou para a Academia Brasileira de Letras graças à sua
produção poética, bastante valorizada na época. Como jornalista, escreveu para
diversos jornais do país. Caiu nas graças do público ao escrever contos
humorísticos sob o nome Conselheiro XX. A produção, no entanto, não agradou a
crítica literária, que a considerou literatura rasa.
O auge da popularidade veio pouco antes da
morte, quando, gravemente enfermo, escreveu sobre si mesmo. Faleceu em 1934,
aos 48 anos, como um dos escritores mais lidos do Brasil. Mas teria voltado à
ativa pelas mãos do médium de Pedro Leopoldo, em crônicas semelhantes às
escritas em vida. Textos que expõem um fato acontecido, fazem analogia a caso
lendário, histórico ou literário, e que contêm uma conclusão em tom
moralizante. Há nos textos atribuídos a Humberto o mesmo tom espontâneo, o
humor e a malícia refinada. Também estão lá a erudição e o culto pela
elegância, assim como o interesse pelo popular.
Enquanto jornalistas, críticos literários,
religiosos e intelectuais dissecavam os poemas de Parnaso de
Além-Túmulo, Chico Xavier mantinha o foco nas psicografias. O livro de
estreia, no fim das contas, era apenas o primeiro dos 30 que, segundo Chico,
Emmanuel havia encomendado. O médium agora demonstrava interesse em escrever
histórias como as psicografadas por uma médium pioneira chamada Zilda Gama.
Chico era grande admirador do trabalho de
Zilda. Depois de ler com entusiasmo uma novela atribuída ao espírito do poeta,
romancista e dramaturgo francês Victor Hugo, ele queria ampliar seu leque de
estilos. Além de poemas, de crônicas e de mensagens instrutoras, o mineiro
queria receber do plano espiritual romances empolgantes como os que Zilda
colocava no papel.
Nascida em 11 de março de 1878, no interior
de Minas Gerais, Zilda Gama teve uma vida conturbada, assim como Chico. Aos 24
anos, com a morte dos pais, teve de cuidar de cinco irmãos e de cinco
sobrinhos. Era uma professora dedicada, diretora da escola em que trabalhava.
Certo dia, quando orava sozinha, disse ter percebido a presença de um espírito
que a incentivava a escrever. Assim que pegou o lápis, teria colocado no papel
uma mensagem do próprio pai, que a consolava e avisava que uma missão de grande
importância estava reservada para ela. Era o início da sua carreira como médium
psicógrafa.
Em 1912, aos 34 anos, Zilda escreveu seus
primeiros textos assinados por Allan Kardec, falecido em 1869. Ela assinaria
outros supostamente enviados pelo pai do espiritismo, mensagens compiladas no
livro Diário dos Invisíveis, de 1929. Mas a grande empreitada de
Zilda seria iniciada em 1916, quando ela contou ter sido avisada por seus
orientadores que escreveria uma novela ditada por Victor Hugo, morto em 1885 e
autor de Os Miseráveis e O Corcunda de Notre-Dame.
O livro Na Sombra e na Luz, de
1917, se passa quase todo no século 19 e ganhou quatro obras como continuação: Do
Calvário ao Infinito, Redenção, Dor Suprema e Almas
Crucificadas. Cada obra narra uma encarnação dos personagens, mostrando a
evolução de seres degenerados e sofredores. Essa série é considerada um dos
maiores clássicos da literatura espírita. Em 1959, após sofrer um derrame
cerebral, Zilda passaria a viver numa cadeira de rodas. A escritora morreu em
janeiro de 1969, pouco antes de completar 91 anos.
O primeiro movimento de Chico Xavier na nova
direção veio com a publicação do livro Emmanuel, em 1938, definido
no subtítulo como “dissertações mediúnicas sobre importantes questões que
preocupam a humanidade”. A obra atribuída ao guia espiritual aborda o papel dos
médiuns, esclarece pontos da doutrina espírita e busca delinear os ideais que
devem nortear o ser humano ao longo da vida.
A primeira parte trata das tradições
religiosas e da evolução da fé no contexto histórico, falando da ascendência do
Evangelho, das origens do cristianismo em Roma e do catolicismo na Europa
moderna. A segunda metade trata de temas científicos e filosóficos à luz da
teoria espírita, como a consciência humana, os animais no plano terrestre, a
civilização ocidental, a saúde humana, o livre-arbítrio e o modus
operandi dos espíritos.
Em 1939, Chico psicografou A Caminho da
Luz, livro que faz um retrato da humanidade à luz do espiritismo. A
história começa na criação do Universo e avança no tempo para falar de
egípcios, hindus, israelitas, chineses, gregos e romanos. O escritor aborda
períodos importantes da história, como as Cruzadas na Idade Média, a Revolução
Francesa e o descobrimento da América. Personagens de destaque na história são
apontados como enviados de Deus, caso de Sócrates e Platão, além das
figuras-chave das grandes religiões: Abraão, Moisés, Confúcio, Buda, Jesus,
Maomé e Allan Kardec.
Primeiro romance épico de uma série de cinco
volumes, Há Dois Mil Anos, de 1940, narra o nascimento do
cristianismo a partir da figura do próprio Emmanuel. Como já dissemos, o
espírito teria sido, em uma de suas encarnações, um senador da Roma antiga
chamado Publius Lentulus Cornelius. O político, segundo a obra de Chico, fora
enviado pelo imperador para a Palestina a fim de fiscalizar Pôncio Pilatos,
acusado de corrupção, exatamente na mesma época em que Jesus pregava entre os
judeus. Na parte mais empolgante do romance, o senador encontra Jesus.
Lentulus, porém, teria sido orgulhoso e não dado muita bola para o filho de
Deus. Depois, se arrependeu e passou a pregar o cristianismo para se redimir.
Outro romance de fundo histórico escrito
pelas mãos de Chico (e assinado por Emmanuel) é Paulo e Estêvão, de
1941. O livro tem como protagonista o apóstolo Paulo e se passa em Jerusalém. A
narrativa vai desde quando Paulo empreendeu perseguições a cristãos até o
momento de sua conversão. Para todos os efeitos, o livro é o Ato dos
Apóstolos, o quinto do Novo Testamento, reescrito pelo
espiritismo. O Estevão do título é o espírito Santo Estevão, mártir do
cristianismo, que ajuda o apóstolo Paulo ao aparecer em sonhos. Em 1943, Chico
publicou o livro Renúncia, que aborda períodos conturbados da
história religiosa ocidental, como a criação da Inquisição, a reforma
protestante, as perseguições promovidas pelos católicos e a atuação dos
jesuítas pelo mundo.
Chico Xavier bateu a meta dos 30 livros
encomendados por Emmanuel. Com folga. Entre os mais de 400 livros publicados
pelo médium ao longo da carreira, quase 117 são atribuídos ao espírito. Chico
nunca deixou de citar a presença e a influência de Emmanuel sempre que
possível. Em 1998, já no final da vida, Chico afirmou que seu guia iria
reencarnar na Terra por volta do ano 2000, vivendo no Estado de São Paulo.
Ao mesmo tempo em que os primeiros volumes
atribuídos a Emmanuel eram publicados, Chico também lançou livros inteiramente
assinados pelo espírito de Humberto de Campos, entre eles Pátria do
Evangelho, de 1938, Novas Mensagens, de 1940, e Boa
Nova, de 1941. Esses trabalhos, no entanto, geraram problemas para o médium
e para a Federação Espírita Brasileira.
A viúva do escritor, Catharina Vergolino de
Campos, começou a solicitar à entidade os royalties sobre os títulos atribuídos
ao marido falecido e colocou Chico novamente no centro de uma grande polêmica
nacional. Os debates em torno das psicografias de Chico – principalmente em
relação a poemas de autores famosos em Parnaso – ainda
ganhavam espaço nos jornais da época, e o médium se viu no meio de duas frentes
de batalha simultâneas na imprensa.
Em 1944, a viúva e os filhos do escritor
entraram com um processo judicial. A família de Humberto de Campos queria que a
Justiça decidisse se os livros psicografados por Chico Xavier eram mesmo de
autoria de Humberto de Campos. Se a Justiça entendesse que os escritos eram
fraudes, a viúva pedia o pagamento de indenização por perdas e danos, podendo
Chico ser preso por falsidade ideológica.
Caso a obra póstuma fosse considerada
legítima, Catharina queria receber os direitos autorais. A opinião pública
aguardava com grande expectativa a decisão do juiz João Frederico Mourão
Russell. Isso porque a ação colocou a autoridade frente a um dilema inédito e
peculiar. Se aceitasse a tese de fraude, talvez o médium mineiro acabasse
preso. Se avaliasse os textos como verdadeiros, a Justiça brasileira aceitaria
formalmente a existência de vida após a morte, dando a jurisprudência ao
pagamento de direitos autorais por livros ditados do além.
Críticos literários e outros interessados
analisaram a fundo outra vez os livros em questão. Houve divergência entre quem
via embuste e quem confiava na palavra de Chico. O médium, mesmo diante da
possibilidade de ser preso, confirmou que tinha contato com o espírito de
Humberto de Campos e com os demais autores que já havia psicografado.
No meio da polêmica, em 15 de julho de 1944,
o próprio morto teria demonstrado o desconforto com a situação em carta
psicografada por Chico Xavier:
Eis, porém, que comparecem meus filhos
diante da Justiça, reclamando uma sentença declaratória. Querem saber, por
intermédio do Direito humano, se eu sou eu mesmo, como se as leis terrestres,
respeitabilíssimas embora, pudessem substituir os olhos do coração.
Abre-se o mecanismo processual e o
escândalo jornalístico acende a fogueira da opinião pública. Exigem meus filhos
a minha patente literária e, para isso, recorrem à petição judicial. Não
precisavam, todavia, movimentar o exército dos parágrafos e atormentar o
cérebro dos juízes. Que é semelhante reclamação para quem já lhes deu a vida da
sua vida? Que é um nome, simples ajuntamento de sílabas, sem maior
significação? Ninguém conhece, na Terra, os nomes dos elevados cooperadores de
Deus, que sustentam as leis universais; entretanto são elas executadas sem
esquecimento de um til.
Na paz do anonimato, realizam-se os
mais belos e os mais nobres serviços humanos. Quero, porém, salientar, nesta
resposta simples, que meus filhos não moveram semelhante ação por perversidade
ou má-fé. Conheço-lhes as reservas infinitas de afeto e sei pesar o quilate do
ouro da carinhosa admiração que consagram ao pai amigo, distanciado do mundo.
Mas, que paisagem florida, em meio do mato inculto, estará isenta da serpe
venenosa e cruel? É por isto que não observo esse problema triste, como o
fariseu orgulhoso, e sim como o publicano humilhado, pedindo a bênção de Deus
para a humana incompreensão.
No fim de 1944, o juiz declarou que a viúva
só tinha direito a receber dinheiro pelos livros que o marido havia publicado
em vida. Com a decisão, a Justiça encontrava uma saída em que não era preciso
julgar se as psicografias eram ou não verídicas. Chico estava livre para seguir
seu trabalho.
A produção do médium era solitária – no plano
físico, ao menos. Raramente era visto em confraternizações e não há registro de
que tenha tido um namoro. Passava os dias no trabalho ou escrevendo. Não se
sentia sozinho, pois vivia cercado de vozes. E, em meio à polêmica sobre os
livros de Humberto de Campos, ele ganhou uma nova companhia. Chico relatou que
um novo espírito começou a rondar suas sessões de psicografia ao lado do velho
guia Emmanuel: André Luiz.
Este conteúdo faz parte do livro Chico
Xavier: A vida. A obras, publicado pela Superinteressante em 2016.
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