160 anos do Espiritismo no Brasil: por que a doutrina se enraizou tanto no país?

  


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Da Redação

Há mais de dois séculos, em Lyon, na França, nasceu Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869). Mais tarde, sob o pseudônimo Allan Kardec, ele sistematizaria o espiritismo, movimento que, ironicamente, encontraria sua maior força não em sua terra natal, mas a milhares de quilômetros dali — no Brasil.

Embora a França seja considerada o berço da doutrina, o espiritismo se consolidou no Brasil como uma das religiões mais influentes do país. Segundo Ricardo Ribeiro Alves, palestrante e escritor espírita, “o francês médio sequer sabe o que é espiritismo”. Já no Brasil, a religião se tornou parte da cultura popular, atraindo milhões de adeptos e simpatizantes.

 Os números do espiritismo

A Federação Espírita Brasileira estima que cerca de 30 milhões de brasileiros simpatizem com a doutrina, embora nem todos se declarem espíritas. O Censo 2022, realizado pelo IBGE, identificou 3,18 milhões de adeptos — 1,8% da população com mais de 10 anos. Apesar de expressivo, o número representa uma queda em relação a 2010, quando havia 3,56 milhões de espíritas (2,2% da população).

Globalmente, o Conselho Espírita Internacional calcula 13 milhões de seguidores, consolidando o Brasil como o principal centro do espiritismo no mundo.

 Da França ao Brasil: uma doutrina em transformação

Kardec lançou, em 1857, O Livro dos Espíritos, obra que estruturou a doutrina. Ele via seu trabalho como uma codificação, não como a criação de uma religião. Combinava filosofia, ciência e valores cristãos em um esforço de racionalizar fenômenos mediúnicos já relatados em sua época.

No Brasil, a primeira sessão espírita ocorreu em 17 de setembro de 1865, em Salvador, conduzida pelo jornalista Luís Olímpio Teles de Menezes. Inicialmente, a doutrina atraiu a elite urbana e letrada, especialmente católicos não dogmáticos. Apesar das resistências da Igreja Católica — contrária às ideias de reencarnação e comunicação com os mortos — o espiritismo encontrou espaço para se expandir.

A associação a um discurso científico, o envolvimento de intelectuais e a atuação filantrópica ajudaram a legitimar a prática. Com o tempo, o espiritismo deixou de ser restrito à elite e se popularizou, principalmente entre as classes médias urbanas em crescimento ao longo do século 20.

 O auge e os mediadores carismáticos

Entre 1940 e 2010, o número de espíritas no Brasil cresceu mais de 700%, superando proporcionalmente o aumento populacional do período. Esse avanço se deveu à penetração entre professores, funcionários públicos, militares e profissionais liberais, que enxergavam na doutrina uma alternativa moderna e racional ao catolicismo.

A consolidação também contou com lideranças marcantes. Médiuns como Chico Xavier, Bezerra de Menezes e Divaldo Franco tornaram-se referências nacionais, aproximando o espiritismo das massas e conferindo-lhe identidade brasileira. O sincretismo com crenças afro-brasileiras, sobretudo na umbanda, reforçou essa adaptação.

 Por que não vingou em outros países?

Na França, o espiritismo nunca se popularizou além de pequenos círculos intelectuais, limitado tanto pelo laicismo republicano quanto pela força da Igreja Católica. Em países protestantes, como Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, o movimento enfrentou a hegemonia cultural e religiosa local.

Já em países católicos como Itália, Espanha e Portugal, o forte controle e a repressão da Igreja impediram o florescimento de práticas religiosas alternativas. No Brasil, ao contrário, a convivência com catolicismo popular, benzedeiras e práticas sincréticas criou um terreno fértil.

 O declínio recente

O Censo de 2022 apontou uma queda no número de espíritas declarados em relação a 2010. Para especialistas, essa retração pode ser explicada por três fatores principais:

 a expansão das igrejas evangélicas;

 a valorização das religiões afro-brasileiras, como umbanda e candomblé, que ganharam espaço próprio; e a secularização crescente da sociedade.

A ausência de lideranças tão carismáticas quanto Chico Xavier também teria contribuído para reduzir a presença cultural do espiritismo na mídia e nas artes.

 Espiritismo no século 21

Apesar da redução numérica, estudiosos acreditam que o espiritismo atravessa uma transformação, e não uma crise. Hoje, os espíritas se concentram nas elites intelectuais e urbanas. De acordo com o IBGE, 48% têm ensino superior completo — contra 16% da média nacional — e apresentam os menores índices de analfabetismo e maior acesso à internet.

O espiritismo segue influente em áreas como assistência social, saúde e cultura, além de impactar o vocabulário cotidiano com termos como “carma”, “mediunidade” e “evolução espiritual”.

Para o antropólogo Bernardo Lewgoy, o espiritismo pode estar antecipando tendências das religiões contemporâneas, conciliando ciência e espiritualidade, individualismo e valores coletivos. “Não será a religião dominante em números, mas seguirá influenciando outras tradições religiosas”, conclui.

 


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