Tem uma história contada por Malba
Tahan, no livro Maktub (Estava Escrito), sob o título “Ingratidão exigida”,
passada na região da Arábia. Conta o autor como protagonista que, certo dia,
passando perto da mesquita de Omar, presenciou uma cena que jamais esqueceu.
Um velho xeique, aproximando-se de um
mendigo que esmolava à entrada do famoso templo de Bagdá, atirou-lhe um punhado
de moedas de ouro. Conforme o mendigo recolhia as moedas com olhos esbugalhados
e mãos rapaces, ao invés de se entregar às usuais e surradas demonstrações de
reconhecimento, entrou a descompor o generoso ancião em sujo linguajar,
rogando-lhe todas as pragas que assolam a espécie humana.
– Allah te castigue, velho nojento!
Longe de mim! – Possa o fogo do maligno nos livrar de tuas mãos pestilentas,
consumindo-te inteiro!
Foi então que o narrador não se conteve
diante de pavorosa ingratidão. Estava indignado e revoltado com o monstruoso
mendigo, que pegava a poupuda esmola com impropérios. Então aproximou-se do
pedinte cheio de cólera e lhe disse:
– Cala-te, filho do cão! Pelas barbas do
Profetas! Como tem a coragem de ofender aquele generoso ancião que te deu o pão
de muitos dias?
E o pobre, com brandas inflexões na voz
e humildade, lhe respondeu:
– Não me condenes, nem me castigues! Se
assim procedo é porque assim o exigiu de mim aquele
O nosso protagonista ficou atônito com a
resposta recebida, que parecia não ter nenhum sentido para ele. Seria possível
que houvesse na Arábia, na Pérsia ou no Egito um homem que se entregasse a
trocar espontaneamente os mais cálidos benefícios pelas mais negras maldições?
Chegou a julgar que o coitado do mendigo poderia ser portador de grave
perturbação mental. Fosse o que fosse, sem controlar a curiosidade, procurou o
xeique para esclarecer de vez aquela situação que o desconcertava. E assim,
alcançando o xeique, que caminhava muito devagar, cumprimentou-o com reverência
e disse:
– Acabo de assistir, surpreendido e
revoltado, à conduta indigna daquele vil mendigo da mesquita. Era a minha
intenção castigá-lo pelos insultos e blasfêmias que ele dirigiu ao senhor, mas
ele disse que assim procedeu porque assim o senhor exigiu. É verdade que acha
justo te pagarem o bem com o mal?
O velho xeique respondeu que era
verdade, que fora ele mesmo que impôs aquela forma de proceder e que reconhecia
que não passava de um egoísmo gerado da sua filantropia. Explicou que sempre
fora filantropo. Ao longo da vida, havia aplacado a fome de muitos, agasalhados
a tantos outros que morriam de frio e só recebia prova de ingratidão dos muitos
beneficiários tão logo passava a hora da necessidade. Em princípio, doíam-lhe
as injustiças daqueles que beneficiara. Vinham-lhe os ímpetos de transformar
seus sentimentos de piedade em desconsideração, com que a maioria dos homens
aprecia as misérias de seus semelhantes. E por repudiar essa fraqueza, esse
desânimo, provocados por uma ingratidão profunda que o feria dolorosamente,
decidiu a habituar-se a receber tais pagas.
– Allah seja louvado! Pela sábia
inspiração que me deu! – Exclamou.
E rematou: – Comecei a exigir de todos
quantos recebem qualquer auxílio meu que me dessem desde logo o que iriam dar
mais tarde, a ingratidão como paga.
Por fim, o autor lembrou os ensinamentos
de Allah: “Esqueceis a ingratidão! Perdoais os ingratos!”
Abstrair a ingratidão é necessário, pois
uma vez que passamos a fazer o bem pelo prazer de fazer, sem esperar nada em
troca, nos sentimos mais livres, mais leves e em paz com a nossa consciência. O
xeique da história encontrou sua forma e, ao mesmo tempo, reconheceu ser egoísta
por ter como objetivo exclusivo impedir que ele ficasse irado e, em represália,
parasse de fazer filantropia, impedindo-lhe de cumprir o ensinamento de Allah.
Em O Evangelho segundo o Espiritismo,
item 19, cap. XIII, “Que a vossa mão esquerda não saiba o que dá a vossa mão
direita”, o Guia Protetor responde à questão: “Que pensar das pessoas que tendo
seus benefícios sido pagos com a ingratidão não fazem mais o bem com medo de
reencontrar ingratos?” A resposta vem ao encontro da antiga versão de Allah, ao
afirmar que essas pessoas são ainda mais egoístas, pois fazem o bem esperando o
reconhecimento.
Lembra ainda que “benefício
desinteressado é o único agradável a Deus”. E ressalta na mesma lição que “Deus
permite que sejais pagos, por vezes, com a ingratidão, para experimentar a
vossa perseverança em fazer o bem”.
Não precisamos ser tão drásticos como o
xeique da história para nos mantermos firmes no propósito de doar a quem
precisa, sem exigir nada em troca; sem esperar honrarias e reconhecimento, mas
por pura vontade de ser útil, agindo como instrumentos de Deus, aliviando a dor
do semelhante, seja ele quem for.
Fonte: Folha Espírita
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