Recentemente, os meios de comunicação
noticiaram que os familiares de vítimas de um acidente aeronáutico haviam
recorrido à Justiça para impedir a venda de um livro, de temática espírita, que
explicaria essa tragédia como um resgate de crimes ocorridos pelas vítimas em
encarnação anterior, quando queimaram cristãos. Segundo o advogado de um dos
familiares, “A família ficou desolada e decepcionada com este livro, que
denegriu a imagem de quem não está aqui para se defender. O autor diz que não
existem vítimas inocentes, que os passageiros eram algozes na Gália na época
dos romanos”.
A Justiça acolheu o pedido, mandou retirar os
exemplares das livrarias e proibiu novas edições. Reconheço que não li o
referido livro, nem conheço o médium responsável por sua publicação (Sim! Os médiuns
são responsáveis por aquilo que tornam público, mesmo que de autoria de um
espírito), mas, apesar de uma enquete realizada pela Livraria da Folha mostrar
que 58% dos votos eram contra a retirada do livro de circulação, questiono
fortemente a oportunidade de uma publicação como essa. Até mesmo porque sabemos
que, boa parte dessas pessoas que se posicionaram contra a retirada, teriam
opinião diferente, se um familiar seu estivesse entre as vítimas do acidente.
Além de ver o nome da Doutrina Espírita levado,
mais uma vez, ao noticiário de forma negativa, com os parentes protestando
contra o que consideram ser uma ofensa à memória de seus entes queridos, ainda
somos obrigados a ler diversos textos, de autoria de ministros de outras
religiões ou materialistas, acusando os espíritas de serem insensíveis ao
publicar um livro que transforma vítimas em verdugos. O mais triste, na
verdade, é ter que concordar com eles…
Qual a real utilidade de se publicar um livro
que aponte as vítimas de uma tragédia tão recente como antigos assassinos
pagando seus débitos de vidas passadas? Se a resposta é ensinar que tudo ocorre
como fruto da justiça e da Lei de Ação e Reação, um contra-argumento é que, um
espírita bem orientado já deveria saber isso. Que não existem vítimas inocentes
já é uma questão de opinião do autor, visto que nem sempre uma morte traumática
pode ser expiação e sim prova. Vasta literatura sobre o assunto já existe,
tanto na forma de romances como de estudos doutrinários. Mas quem não é
espírita não quer saber a opinião do Espiritismo sobre suas tragédias pessoais.
Então, para que lançar um livro
especificamente sobre essa tragédia? Para, aproveitando a atualidade do fato,
atrair mais leitores, curiosos sobre o assunto? E para divulgar a idéia de que,
para os espíritas, Deus se vinga das pessoas mesmo séculos depois, tal qual um
perseguidor implacável? Sim, porque para muitos não-espiritas e, infelizmente,
alguns espíritas, o que se conclui é que Deus está punindo espíritos
criminosos, com a Lei de Talião que pregava o olho por olho, dente por dente.
Não é raro ficarmos sabendo, por meio de
conhecidos que não são espíritas, que confrades nossos teriam “explicado” situações
dramáticas, como doenças, invalidez ou morte por meio dessa lógica equivocada
do tipo “se seu avô morreu afogado é porque afogou alguém em outra vida e está
pagando agora”. A insensibilidade desse tipo de comentário, mesmo que
correspondesse à verdade, é impressionante.
Se pretendemos ensinar como o mal que fazemos
dará origem a expiações no futuro, mesmo que em outras encarnações, não
precisamos de exemplos reais ou, pelo menos, tão recentes. Até porque o
raciocínio “morreu queimado para pagar por ter queimado alguém” nem sempre se
aplica.
Precisamos, antes de tudo compreender os
mecanismos da Lei de Ação e Reação. Um espírito não chega no mundo espiritual e
já recebe, como punição, a ordem de voltar a Terra e sofrer desse ou daquele
jeito, morrer dessa ou daquela maneira. Por incrível que pareça, existem muitos
espíritas desavisados que se confundem e acreditam nesse tipo de punição. Sobre
o assunto, Kardec recebeu a seguinte resposta dos espíritos: “Deus sabe
esperar; não apressa a expiação”. (1)
Muitas vezes, o espírito, ao chegar no plano
espiritual, nem tem consciência de suas faltas. Para ele, o que foi feito ou
está correto ou foi somente consequência das atitudes de outras pessoas. Porém,
com o tempo, seu nível de compreensão vai aumentando e ele compreende o mal que
fez aos seus semelhantes e sua consciência começa a acusá-lo. Veja bem! Não é
Deus quem o acusa, não são os espíritos superiores que o condenam. É ele mesmo.
Para que possa ascender mais um degrau na escala de evolução espiritual, ele
necessita reparar o mal que fez.
Sobre as penas, Kardec recebeu a seguinte
resposta: “ele escolhe as que podem ser para ele uma expiação, pela natureza de
seus erros, e lhe permite avançar mais rapidamente” (2). Mas, essa reparação
nem sempre é feita “pagando-se na mesma moeda” como muitas pessoas acreditam.
Uma vida de extrema dedicação ao próximo pode resgatar um assassinato praticado
em outra vida, sem a necessidade da pessoa ser assassinada também.
O que ocorre é que o resgate de faltas
passadas por meio de mortes trágicas ou traumáticas pode ser solicitado pelo
espírito devedor como forma de aliviar seu fardo de culpa, culpa essa que surge
como fruto do seu desenvolvimento moral. Portanto, o espírito da pessoa que
desencarna em situações trágicas, muitas vezes, já evoluiu o suficiente não só
para pedir essa prova, como também para poder aproveitá-la adequadamente. Por
isso, para ele, uma prova dolorosa não causa repulsa (3). De nada adiantaria um
espírito ainda preso aos crimes que cometeu, e sem nenhum sentimento de
remorso, passar pelo mesmo sofrimento que causou, porque isso só o deixaria
mais revoltado e em nada o ajudaria.
Isso não quer dizer que nenhum espírito se
revolte contra as provas que ele mesmo escolheu. Todos nós conhecemos pessoas
que são a prova viva disso, constantemente se queixando de problemas que,
desconfiamos, foram escolhidos por eles mesmos como forma de exercitarem
qualidades como paciência, resignação, tolerância, etc.
Mas, no geral, essas mortes traumáticas, como
forma de expiação, são escolhidas por espíritos que já alcançaram um nível de
entendimento para abraçá-las sem temor, certos de que, após essa prova, poderão
seguir no caminho da evolução espiritual livres do peso da culpa.
Para se orientar um amigo que não seja
espírita, de forma a que ele não saia da conversa com uma má impressão dos
conceitos doutrinários, precisamos conhecer bem a Doutrina. A um espírita bem
informado, esses conceitos são indispensáveis para a compreensão das tragédias.
Mas não podemos, nem devemos, esperar esse mesmo grau de entendimento por parte
de quem não partilhe das mesmas crenças que nós. Para essas pessoas, a morte de
seus entes queridos só serviu para provocar dor e desespero nas famílias. Se
crêem em Deus, procuram acreditar que essa morte foi determinada por Ele, mas
não compreendem os chamados “desígnios divinos”. Se não crêem, a morte é o
final de tudo e os entes queridos se foram para sempre.
Se uma dessas pessoas, seja de que crença
for, procurar o auxílio de um médium, como tantas o fizeram com Chico Xavier e
ainda fazem hoje com outros médiuns, a obtenção de uma comunicação de conforto,
que explique que aquela morte teve um motivo justo, não só é justificável como
pode trazer paz a toda uma família. Mas essa pessoa, ao procurar um médium, já
estava psicologicamente preparada para o que recebeu.
Porém, que benefício trará uma informação de
que uma morte trágica foi fruto de uma expiação por crimes do pretérito para um
familiar que nunca procurou uma explicação espirita para o fato? Na verdade, me
parece muito mais que estamos copiando o que se fazia no passado, quando padres
e pastores vinham a público explicar, da maneira deles, os fenômenos espíritas,
seja acusando de fraudes, seja culpando demônios pelas manifestações. Se não
nos agradava esse comportamento, que não façamos o mesmo, impondo nossa visão e
crença àqueles que não querem ou não estejam preparados ainda para isso.
(1) – Allan Kardec – O Livro dos Espíritos –
Questão 262a
(2) – Allan Kardec – O Livro dos Espíritos –
Questão 264
(3) – Allan Kardec – O Livro dos Espíritos –
Questão 266
Publicado na RIE Revista Internacional de
Espiritismo
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube?
Inscreva-se no nosso canal! Clique aqui
0 Comentários