por Dora Incontri
O
processo civilizatório é justamente aquele que trabalha, transforma, educa e
sublima essas pulsões, sejam elas de outras vidas ou não.
Minha mais engajada militância na vida tem
sida a ideia de uma pedagogia espírita, que não é uma proposta de pedagogia
doutrinante e sectária do espiritismo (ao invés trabalhamos com a
inter-religiosidade e o pluralismo). Essa corrente é herdeira de grandes
educadores como Comenius, Roussseau, Pestalozzi e do próprio Rivail/Kardec, que
foi discípulo de Pestalozzi e pedagogo durante 30 anos na França. É prima irmã
de pedagogias como a de Montessori, Freinet, Paulo Freire e outros; é uma
proposta emancipatória, que pretende renovar a educação pelo mais fundo de si
mesma, levando em conta seu contexto e sua interação social.
Qualquer um, desses grandes educadores
citados acima, poderia dar boas respostas para questões pedagógicas, sociais e
existenciais que enfrentamos no mundo contemporâneo. Um mundo esvaziado de
sentido, violento e desumanizado.
Quando nos defrontamos com as tragédias
ocorridas nessa semana, no Brasil e na Nova Zelândia, precisamos recorrer à
filosofia, à psicanálise, à espiritualidade, para acharmos algumas causas, que
são muitas, complexas e entrelaçadas, e pensarmos possibilidades de prevenção,
e não nos desesperarmos totalmente da humanidade.
Sim, na superfície aqui no Brasil, temos o
presidente eleito, apontado arminhas com crianças e estimulando a violência e
propondo o armamento da população. Isso é grave e agrava a situação. Mas está
longe de ser a causa profunda. Aliás, justamente devemos nos perguntar porque
uma tal pessoa, que tanta apologia faz da violência e da tortura, atraiu tantos
jovens e adolescentes, que aderiram ao seu discurso. As mesmas obscuridades
profundas do inconsciente das massas que levam a se identificar com tais
personagens (não só a do presidente eleito, mas de seu guru e de seu entorno
familiar e político) são as que levam um menino a sair atirando contra crianças
e professores.
Todos temos o nosso lado sombrio. Para a
visão reencarnacionista, certamente já participamos de crimes, guerras,
massacres – basta ver a história humana. Se nós somos os que fizemos essa
história milênios, séculos, décadas atrás, então trazemos toda essa violência
em nós. Mas mesmo que não aceitemos a ideia da reencarnação, nosso
inconsciente, formado pelo atavismo da espécie e pelos recalques da infância,
também tem pulsões destrutivas, como bem percebeu Freud e que se não forem
sublimadas, podem estourar a qualquer momento, seja no indivíduo, seja nas
massas.
O processo civilizatório é justamente aquele
que trabalha, transforma, educa e sublima essas pulsões, sejam elas de outras
vidas ou não.
O que se dá é que de tempos em tempos na
história humana, esgarçamos o verniz da cultura e há um estímulo geral para os
monstros virem à tona.
Quem recebeu uma educação amorosa, quem teve
condições sociais de se firmar como um sujeito autônomo, com boa autoestima,
quem teve acesso ao melhor que há da cultura humana, terá mais recursos para se
manter no nível da humanidade e não escorregar para a brutalidade.
Mas, sabemos que mesmo uma nação educada,
culta e supostamente civilizada, como a alemã, que teve um Bach e um Beethoven,
um Goethe e um Bertold Brecht, resvalou para a mais funda barbárie, com vasta
participação popular, trucidando milhões de pessoas, com um discurso totalmente
sem nexo. Eu que vivi na Alemanha, por três vezes, sempre tive essa
perplexidade diante do nazismo e agora sou obrigada a enxergar a barbárie
ressurgir entre o meu próprio povo.
Aí é que entram minhas reflexões pedagógicas,
aliás, iluminadas pelos estudos que tenho do assunto, mas também pela própria
experiência de ter vivido e ido a escola, na Alemanha.
A educação teria de ser um processo de
desenvolvimento pleno, acolhedor. Todos precisariam de amor inteiro na
infância. Winnicott já estudou o quanto a privação afetiva nos primeiros anos
da criança causa buracos internos, que levam à loucura e à delinquência. Esse
amor necessário não é algo abstrato – é comida, teto, roupa, ambiente saudável.
Mas também é toque, colo, carinho, aconchego, escuta, presença protetora e
confiável do adulto.
Mais adiante, a criança deveria ser educada
não apenas considerando-se seu desenvolvimento cognitivo. E já isso é muito mal
feito mesmo nas melhores escolas, imagine-se na sucateada escola pública brasileira.
Por que mal feito? Porque a escola deveria ser estimulante, criativa, verde,
afetiva, sem muros, com diálogo e democracia e não com regras impostas e
chatice extrema. Mas além dessa parte intelectiva, a criança precisaria ter uma
educação terapêutica. Aprender a analisar, expressar e trabalhar as próprias
emoções. Não se sentir sozinha, rejeitada, cheia de medos e frustrações, sem
possibilidade de diálogo e socorro. E nesse caso, ainda pior, na constituição
do menino, que é chamado a ser o forte, o herói, o violento, o macho predador…
muitas vezes pelo pai ou pelas referências masculinas que tem em torno de si ou
pela ausência delas.
Mesmo quando a educação atinge parâmetros de
civilização e cultura refinadas, como foi o caso da Alemanha e como é o caso de
nossas elites brasileiras (será mesmo?), a ausência de um trabalho com as
emoções e a com a afetividade, pode deflagrar a abertura para o sombrio que há
em nós.
Obviamente que todas essas condições ideais
de uma educação integral, formadora do ser e transformadora do mundo, dependem
de concretas condições econômicas e sociais. Os pais dessas crianças, os
professores desses alunos também precisariam ter sido cuidados, amados, e terem
condições dignas de trabalho, alimentação e moradia.
Então, tudo se conecta nas causas dessas
tragédias: a estrutura capitalista desigual e injusta; a falta de perspectivas,
de sentido existencial; a sociedade que só oferece a possibilidade de consumo
como compensação do vazio, mas essa possibilidade não chega às periferias do
mundo; a falta de tempo e espaço para cuidar do outro, da criança, do velho, do
amigo, porque o trabalho é extenuante, a sobrevivência indigna… E não mencionei
aqui a indústria de armas, que se alimenta da morte, lucra com isso e não tem
nenhum interesse em promover a paz.
Então… para tudo! Precisamos mudar todas as
coisas. E talvez, essas grandes e terríveis tragédias em toda a parte, em que
vemos a Deep Web alimentar os instintos mais ferozes e primitivos, em que há
crianças e adolescentes matando, se matando e sendo mortos… nos mostrem o
quanto esse planeta está torto, o quanto está tudo errado e o quanto precisamos
correr para mudar o que está posto.
Nessa reflexão, a perspectiva da eternidade e
das múltiplas vidas conforta um pouco, mas não nos deve desacelerar na luta por
uma sociedade mais humana. Mesmo porque, mais à frente, reencontraremos a
própria história que tivermos ajudado a fazer.
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