por Franklin Félix
O incêndio no Museu Nacional me fez
lembrar do trágico “Auto de Fé de Barcelona, triste episódio de perseguição ao
espiritismo
Neste momento de forte comoção nacional em
decorrência do incêndio que destruiu quase totalmente o Museu Nacional, no
Rio de Janeiro, foi impossível não rememorar o trágico “Auto de Fé de
Barcelona”.
Por esse motivo, dedico este texto a
todos os funcionários do museu, além de outros museólogos, arqueólogos,
antropólogos, educadores e sociedade civil, nacional e internacional.
O Auto de Fé de Barcelona foi um
triste episódio a envolver o espiritismo e o poder conservador europeu do
século XIX. Era por volta das 10 horas da manhã de 9 de outubro de 1861,
quando, em praça pública, após reter na alfândega os livros espíritas vindos de
Paris, religiosos, articulados com representantes do Estado – qualquer
semelhança com o que estamos vivendo nos dias de hoje no Brasil não é mera
coincidência – ordenaram a queima dos 300 livros.
Mais tarde, em novembro do mesmo ano, Allan
Kardec relatou o episódio na Revue Spirite (Revista
Espírita), sob o título "O resto da Idade Média".
Com o evento, noticiado pela imprensa do
mundo inteiro e evocando as antigas fogueiras do Santo Ofício, o que parecia um
mal tornou-se um forçoso bem, chamando atenção de mais gente para aquela
doutrina que nascia.
Em decorrência deste episódio, Kardec
comentou:
“Graças a esse zelo imprudente, todo o mundo,
em Espanha, vai ouvir falar do espiritismo e quererá saber o que é; é tudo o
que desejamos. Podem-se queimar os livros, mas não se queimam as ideias [os
espíritos]; as chamas das fogueiras as superexcitam em lugar de abafá-las. As
ideias, aliás, estão no ar, e não há Pirenéus [cordilheiras] bastante altos
para detê-las; e quando uma ideia é grande e generosa, ela encontra milhares de
peitos prontos para aspirá-la”.
Kardec, talvez por também ter sido discípulo
de Pestalozzi, foi um grande educador, de uma capacidade “dialógica” incrível.
Claro que esse é um termo cunhado, muito
tempo depois, por Paulo Freire, outro grande educador, mas penso que
sintetiza bem o mestre lionês.
Para Freire, “dialogicidade” está em permitir
aos indivíduos agirem e refletirem sobre a ação (pedagógica) realizada,
diferente de um refletir exclusivo da mente do educador. Aí se chega à práxis,
ou à "teoria do fazer", com ação e reflexão simultâneas, em
reciprocidade.
Foi isso que Kardec fez, diante da violência
intransigente de setores reacionários e conservadores: propôs um diálogo com
aqueles que queriam e estavam dispostos porque identificou ali abertura,
respeito, reciprocidade e escuta, elementos fundamentais para qualquer mudança
e quebra de paradigmas.
Voltando ao episódio do Museu Nacional,
podemos extrair algumas aprendizagens importantes e deixarmos para as futuras
gerações - pois lhes foi tirada parte de sua história – um legado de
resistência, de denúncia e de anúncio.
Não é possível reconstruir o prédio que
ficava no Palácio de São Cristóvão, que abrigou a família real portuguesa
quando vieram para o Brasil, em 1808, e, desde a proclamação da independência,
em 1822, a família real brasileira, pois um museu não é feito apenas de tijolos
e cimento: é feito de histórias.
O prédio mantinha um acervo de cerca de 20
milhões de itens, entre fósseis, múmias, registros históricos e obras de arte
que viraram cinzas.
O atual governo, que congelou investimentos
públicos por 20 anos em áreas como cultura e educação, por meio de políticas de
"austeridade" transformadas em emenda constitucional, é o principal
responsável por essa tragédia.
O incêndio ocorreu dois meses após a
celebração de 200 anos de sua criação, mas, apesar do prestígio, a primeira
instituição científica do Brasil sofria cortes em seu orçamento nos últimos
anos e, desde 2014, não recebia a verba de 520 mil reais anuais necessária
para sua manutenção.
Para nós religiosos, o incêndio destruiu
parte de nossa história, pois queimou o fóssil de 12 mil anos de Luzia,
descoberta que refez todas as pesquisas sobre ocupação das Américas.
E queimou o documento de assinatura da Lei
Áurea, o pergaminho datado do século XI com manuscritos em grego sobre os
quatro evangelhos, o exemplar mais antigo da Biblioteca Nacional e da América
Latina, a Bíblia de Mogúncia, de 1462, primeira obra impressa a conter
informações como data, lugar de impressão e os nomes dos impressores, os
alemães Johann Fust e Peter Schoffer, ex-sócios de Gutemberg,. Isso sem falar
na Bíblia Poliglota de Antuérpia, de 1569, obra monumental do mais renomado
impressor do século XVI: Cristóvão Plantin.
Segundo Kardec, “quando o artista houver de
reproduzir com convicção o mundo espírita, haurirá nessa fonte as mais sublimes
inspirações”.
Com isso, desde 1857, o espiritismo tem se
aberto para a arte e cultura como um todo, um campo inteiramente novo, imenso e
ainda inexplorado – conforme o pensamento do seu codificador.
Destaca-se ainda o fato de que, entre as
obras queimadas no Auto de Fé de Barcelona, estava incluído o “Fragmento de
Sonata” ditado pelo espírito de Mozart.
Parafraseando Kardec, queima-se uma parte
importante da história brasileira e mundial, mas não se pode queimar as ideias,
os desejos, os sonhos e a esperança de um país mais justo, democrático, que
valorize sua cultura e que invista em uma educação transformadora.
“Todos que por aqui passem protejam esta
laje, pois ela guarda um documento que revela a cultura de uma geração e um
marco na história de um povo que soube construir o seu próprio futuro”.
Esta é a inscrição na entrada do Museu
Histórico Nacional.
Whatsapp: (27) 99968-5641
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