É importante resgatar os preceitos de Kardec, baseados nos ensinamentos amorosos do Cristo |
Por que devemos nos estagnar,
impedindo o debate e aceitando como verdades absolutas aquilo que é passível de
diferentes interpretações?
Nos últimos tempos, temos debatido a questão
apresentada no enunciado e tentarei sintetizar neste artigo parte destas
reflexões, tomando o cuidado de não ser reducionista e nem, inadvertidamente,
querer colocar fim ao debate, que vem crescendo, a cada dia, com a criação de
movimentos autônomos e progressistas dentro do Movimento Espírita Brasileiro
(MEB), como, por exemplo, a Associação Brasileira de Pedagogia Espírita (ABPE),
o Coletivo de Estudos Espiritismo e Justiça Social (CEJUS) e o Jornal Crítica
Espírita.
MEB é todo o conjunto de atividades que visa estudar, divulgar, praticar e difundir a Doutrina Espírita, contida nas obras básicas de Allan Kardec. Qualquer pessoa que estude profundamente o espiritismo pode, isoladamente ou em conjunto, desenvolver ou conduzir atividades espíritas. Diferente de outras comunidades de fé (e isso não é uma crítica a elas), não há, dentro do espiritismo, iniciações, rituais, adornos ou hierarquias.
Embora haja entidades federativas que
desenvolvam as atividades de união das instituições espíritas e de unificação
do MEB – e guardo profundo respeito por sua importância social e histórica –,
não devemos nenhuma obediência a elas, ainda mais diante de determinadas
posturas conservadoras e retrógradas.
O próprio professor Kardec, por meio do
livro O que é o espiritismo, nos advertiu que a “Doutrina
Espírita é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica
(...). Como ciência prática, consiste nas relações que se podem estabelecer
entre nós e os Espíritos; como filosofia, compreende todas as consequências morais
que decorrem de tais relações” e, por esse motivo, “possui um caráter tríplice,
pois abrange princípios filosóficos (é uma ‘filosofia espiritualista’),
científicos e religiosos ou morais”.
Sendo assim, por que devemos nos estagnar,
impedindo o debate e aceitando como verdades absolutas aquilo que é passível de
diferentes interpretações? Tudo é fruto de interesses de grupos, de
contradições, antagônicas ou não, nos segmentos sociais ou, inclusive, entre as
religiões.
Temas da atualidade precisam ser amplamente debatidos dentro das casas espíritas considerando-se a opinião de religiosos/as e não religiosos/as, como é o caso da descriminalização do aborto. Precisamos dar vez e voz às mulheres e atuarmos juntos/as na busca de políticas públicas de qualidade, de resposta fraterna, empática e verdadeiramente eficaz para o grande número de morte de mulheres, em sua maioria negras e empobrecidas, decorrente de abortos inseguros. Será que é muito difícil para os homens ouvir mais e falar menos?
Outro assunto que merece nossa reflexão diz
respeito ao combate à violência e ódio motivados pela orientação sexual e
identidade de gênero. Acompanhamos, há pouco tempo, um distinto orador espírita
palestrando contra a vida e integridade de travestis, mulheres e homens
transexuais, alegando que a tal “ideologia de gênero”, discurso encampado por
religiosos/as mal intencionados/as, pode influenciar nas escolhas de nossas
crianças, como se as orientações sexuais e identidades de gênero fossem um
comportamento adquirido.
Se o progresso constitui um dos princípios do
espiritismo, todos os espíritos chegarão um dia à perfeição. Sendo isso
inegável, e reconhecendo a constante progressão do conhecimento e o papel que a
ciência representa no processo evolutivo da humanidade, Kardec escreveu no
livro A Gênese, cap. I, item 55: "Caminhando de par com o
progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas
lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria
nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará."
Ainda que o espiritismo não faça nenhuma
acepção de pessoas ou pregue qualquer tipo de discriminação - aliás, nenhuma
religião faz -, quando as suas interpretações, feitas por pessoas, geram
exclusão e preconceito, muitos/as trabalhadores/as e frequentadores/as acabam
sendo rotulados dentro de casas espíritas, por sua condição socioeconômica, por
questões de sexualidade e/ou gênero e, nos últimos tempos, por convicções
político-partidárias.
Frequentei um centro espírita durante muitos
anos e, embora estivesse localizado na periferia de São Paulo, o espaço era
frequentado por professores/as, juízes/as, médicos/as, profissionais liberais,
funcionários/as públicos/as – a nata espírita da região. Presenciei alguns
episódios pouco cristãos, como o de um trabalhador que foi afastado das suas
funções por ser homossexual e “militante demais”, ou de uma trabalhadora que,
por receber Bolsa Família e defender este programa, “não estava
preparada para as funções mediúnicas” (que é a comunicação entre humanos
“encarnados” e espíritos “desencarnados”).
Percebam que temos muito trabalho pela
frente, dentro e fora do movimento espírita: disputando narrativas, denunciando
abusos cometidos por representantes espíritas, eliminando velhos paradigmas,
construindo pontes ao invés de muros, ensinando, didaticamente, conceitos de
bem-viver e justiça social e, sobretudo, resgatando os preceitos de Kardec,
baseados nos ensinamentos amorosos do Cristo, esquecidos pelos/as pseudomédiuns
midiáticos/as, pelos/as dirigentes fanáticos/as e pelos/as expositores/as
ensimesmados/as.
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