Em primeiro lugar, devo declarar para
abertura desse artigo que considero o aborto algo muito negativo, traumático,
para a própria mulher, para o ser que está em seu ventre e para a sociedade.
Ninguém aborta por esporte e conheço várias mulheres que abortaram por
convicção e nem por isso tratou-se de um fato corriqueiro, sendo um ato que
deixa sempre uma ferida psíquica. Do ponto de vista espírita, sabemos que há
ali um ser reencarnante, que sente a expulsão à força daquele local
aconchegante e supostamente protegido, que deveria ser o ventre de uma mãe.
Até mesmo a psicanálise, uma ciência sem
nenhuma ideia de transcendência espiritual, considera que há vida humana
uterina, já que se fala em formação psíquica desde o ventre, e que se pode
trabalhar mesmo traumas que se deram durante esse momento. Se há alguma forma
de lembrança emocional que a pessoa pode ter da fase fetal, então isso significa
que havia uma consciência ali, pelo menos em formação. Alessandra Piontelli,
uma psicanalista italiana, relata os resultados de uma pesquisa realizada com
crianças, desde o ventre até a idade de 4 anos num livro chamado De Feto a
Criança – um estudo observacional e psicanalítico. Aí se percebe que falas,
vivências, impressões que a mãe teve durante a gravidez repercutiram no
psiquismo da criança em gestação. Para o grande psicanalista inglês, Donald
Winnicott, a relação mãe-bebê, um estado de fusão psíquica que só vai se
desfazer totalmente aos 2 anos de idade, começa ainda no ventre.
Pondero tudo isso, para deixar claro que a
questão do aborto não é apenas, como querem alguns, uma discussão entre
feministas radicais e religiosos fanáticos! Geralmente essa polêmica tem girado
em torno dos argumentos seguintes: De um lado, a liberdade da mulher de fazer o
que quiser com o próprio corpo (mas há outro corpo e outra consciência ali) e
de outro lado uma questão de princípios religiosos (mas esses princípios não
poderiam se apresentar como parâmetro social de uma coletividade em que há
crentes e ateus e divergências de visão de fé – o Estado deve ser laico e não
pode se orientar por determinações religiosas). Acredito assim que não
deveríamos discutir o aborto meramente do ponto de vista ideológico e
religioso. Deveríamos olhar a problemática mais de forma psicológica, ética e
social.
Os espíritas, supostamente, deveriam estar de
posse de um discurso diferente de outras correntes religiosas, fazendo apelo a
evidências de pesquisa de que há uma consciência que sente ali no ventre
materno. Por exemplo, as fartas pesquisas de memórias de vidas passadas de Ian
Stevenson e equipe ou as regressões que muitos terapeutas fazem que passam pela
memória intrauterina (cujas lembranças podem ser confirmadas por pais e outros
familiares).
Entretanto, como no Brasil, o espiritismo
virou mais uma religião institucionalizada, os órgãos federativos assumem um ar
místico de defesa da vida, que em nada difere do discurso de outras religiões.
E há vários problemas nessa postura.
Primeiramente, podemos considerar o aborto um
trauma psíquico para a mãe e para o espírito reencarnante, mas não precisamos
com isso criminalizar a mãe e encarcerá-la. Isso é desumano, desnecessário e
ineficiente para coibir o aborto. Sobretudo porque sim, nesse caso, temos uma
visão machista, como se uma mulher pudesse ter um filho sozinha. Os homens
também são responsáveis pelo ser que geraram – embora muitas e muitas vezes não
assumam. E depois querem fazer leis que criminalizam a mulher, que foi deixada
sozinha com a decisão de ter ou não esse filho. De outro lado também, os
próprios homens deveriam reivindicar o direito de decidir em conjunto, já que o
filho não é só da mulher. Ela não é a única envolvida na questão.
O problema, portanto, não é ser contra a
aborto, o problema é criminalizá-lo. Também considero repugnantes as clínicas
comerciais de aborto, sejam clandestinas em países em que o aborto é proibido,
sejam oficializadas em países em que é legal – em ambos os casos, aliás,
bastante lucrativas. Mas a questão é de conscientização e não de proibição.
E o problema dos espíritas não é militar
contra o aborto, mas a maneira que o fazem e a exclusividade de sua militância
por essa questão.
Ao invés de ficar batendo na tecla de não
descriminalizar o aborto, porque os espíritas (e com isso digo as instituições
que se julgam representantes do espiritismo) não discutem as mortes de mulheres
pobres nas clínicas de aborto clandestinas, por que não falam do machismo da nossa
sociedade que não ampara a mulher na maternidade, a partir de muitos pais,
homens, que consideram que não é com eles (eles não deveriam ser criminalizados
também nesse caso?), da miséria estrutural que não favorece a consciência
social da gravidez desejada e responsável?
A nossa militância deveria ser pela licença
maternidade e pela licença paternidade prolongadas, pela educação sexual na
adolescência, numa postura de prevenção da gravidez precoce, pela abolição da
violência obstétrica, da violência doméstica, da violência sexual contra
mulheres e crianças… E de nada disso ouço os espíritas institucionais falar…
Sem mencionar outros temas vitais que
deveriam fazer parte da pauta de discussão e militância destes nossos
companheiros tão devotados à vida: será que ouvi alguma manifestação da FEB
contra a intervenção militar no Rio de Janeiro, a mesma que exterminou Marielle
com 9 tiros e que poucos dias atrás matou um menino em uniforme escolar? Por
que motivo esses nossos confrades (para usar um termo que ouvia muito na minha
adolescência espírita) se mobilizam tanto por uma criança que não nasceu ainda
(e já disse que me mobilizo também) mas não dizem uma palavra das crianças
mortas nas favelas por tiros perdidos ou pelo extermínio sistemático de jovens nas
periferias de São Paulo ou nos morros do Rio de Janeiro?
Já narrei num artigo sobre o assunto no meu
blog pessoal, qual foi a postura de
Pestalozzi em pleno século XVIII, na Suíça, quando se debruçou sobre as
mulheres que matavam seus filhos ao nascerem e depois eram condenadas pela
justiça. Descobriu que era um problema social, pois eram mulheres que vinham do
campo, engravidavam, eram abandonadas e não tinham nenhum apoio. E Pestalozzi
não achava que era justo e necessário punir as mulheres, mas prevenir a
situação social, que as levava àquele ato desesperado.
Com toda essa problematização da postura dos
espíritas na sociedade brasileira, gostaria de dizer que me preocupa ver os
supostos representantes do espiritismo ao lado das facções mais conversadoras
das igrejas cristãs, com um tom moralista e religioso, tão ungidos contra a
descriminalização do aborto. Acho que os espíritas deveriam ter uma abordagem
mais abrangente, compassiva e complexa do problema e ao mesmo tempo se
engajarem em outras urgências sociais, das tantas que se apresentam no Brasil e
no mundo, com propostas progressistas, transformadoras e profundas.
1 Comentários
Obrigado pela abordagem humana e lúcida.
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