ESPÍRITAS PROGRESSISTAS – ISSO EXISTE?


Por Dora Incontri

Tempos atrás em nosso site da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita, num desses debates acalorados que provocamos no movimento espírita, lançamos um abaixo assinado, pontuando algumas questões relativas a certas declarações de Divaldo Franco. Os que assinamos esse documento nos autodeclaramos espíritas progressistas.

Esse qualificativo foi objeto de apaixonadas discussões. Alguns achavam que seria um pleonasmo, outros se indignavam, dizendo que não existem espíritas progressistas. Que espírita é espírita e pronto. Quem se intitula progressista – insinuavam ou diziam aos berros – certamente é comunista, esquerdopada e deveria ir para Cuba (sic).

Na época, cheguei a explicar para alguns que sim, espírita progressista é um pleonasmo, mas porque existem tantos espíritas conservadores, retrógrados, que se torna uma necessidade enfatizar o caráter de vanguarda de grupos como o nosso.

O que significa afinal progressista? É um termo usado de forma genérica, para indicar posições de mais abertura, mais avançadas, em qualquer domínio. Por exemplo, diz-se: os setores mais progressistas de tal ou qual religião, de tal ou qual corrente política e assim por diante. Não se refere a uma ideia específica, mas a uma atitude de compreender e aceitar o novo e procurar soluções mais corajosas para as mudanças da sociedade. Trata-se de uma postura mais crítica em relação à realidade.



Ora, inacreditavelmente deu-se um fato, que preciso narrar aqui. Meses depois do tal documento assinado por “espíritas progressistas”, eis que desembarco na França para a filmagem de um documentário sobre Kardec, do qual sou corroteirista e pesquisadora. Entrevistamos sociólogos, antropólogos, historiadores que têm como objeto de estudo Kardec e o espiritismo. E qual não foi meu deleite ao ouvir de todos, sem exceção, justamente a palavra “progressista”, para se referir a Kardec e ao espiritismo, no século XIX! Todos os acadêmicos colocam o nascimento do espiritismo e a atuação de Kardec num contexto de grande efervescência cultural, de ideias de transformação da sociedade e que o espiritismo surgiu na vanguarda, aliado ao socialismo utópico, à homeopatia, ao feminismo, à emancipação da Igreja e à afirmação da liberdade e da razão.

Por isso, podemos plenamente reivindicar esse termo como próprio do espiritismo, até porque se trata de uma filosofia que enfatiza a evolução, ao contrário daquelas religiões  salvacionistas e daquelas doutrinas materialistas pessimistas. Entendendo-se que nem toda religião é salvacionista (por exemplo, o budismo e o hinduísmo não são, mas também não são evolucionistas) e nem toda doutrina materialista é pessimista (por exemplo, o marxismo não é, porque tem a ideia de fazer, através da revolução, uma sociedade futura sem Estado e sem classes e a psicanálise freudiana é pessimista, porque Freud não vê muita saída para o ser humano, pelos seus impulsos de agressividade e morte.) Entendendo-se também que toda visão evolucionista, seja revolucionária ou não, assume que a história e a humanidade estão em mudança permanente para melhores condições e propõe que os indivíduos sejam sujeitos históricos que influenciem nesse movimento.

Sucedendo-se a Kardec, tivemos Léon Denis na França e Herculano Pires no Brasil – ambos progressistas, no sentido de serem críticos da sociedade e trabalharem pela sua melhoria com ideias novas e abertas, dentro de seus contextos, claro. É preciso alertar também que as ideias progressistas de uma época podem depois parecer muito óbvias, porque em outra época, elas já foram incorporadas.

Aqui no Brasil, justamente no campo da educação, tivemos os espíritas progressistas, o próprio Herculano, que criou o termo Pedagogia Espírita e começou a teorizar sobre o assunto e antes dele, Eurípedes Barsanulfo e Anália Franco, ambos do final do século XIX e início do século XX e que assumiram propostas muito à frente de sua época, por exemplo, a inclusão da mulher, do negro, uma educação inter-religiosa, ativa e com diálogo e afeto – coisas totalmente ausentes daquele tempo.

Mas na sua grande maioria, os espíritas brasileiros se bandearam para posturas conservadoras, também sob a influência de Chico Xavier e do próprio Emmanuel. Não estou desconsiderando a contribuição que Chico deu com muitos de seus livros mediúnicos, edificantes e belos – embora alguns sejam bastante problemáticos e requerem uma crítica mais apurada. Mas dentro de seu contexto social e educacional e sob a influência de Emmanuel, um espírito que considero elevado e nobre, mas ainda com resquícios do senado romano e da ordem jesuítica –  era o que ele poderia oferecer. Entretanto, nas falas de Chico, há posturas extremamente conservadoras, como o seu apoio à ditadura militar, a submissão da mulher, a naturalização de se bater e torturar crianças (quando ele narrava de maneira quase masoquista o que a madrasta fazia com ele…) Enfim, hoje diríamos que Chico teria de ter passado por uma terapia, para enfrentar seus traumas, para encarar sua possível homossexualidade, etc. Mas eram outros tempos. O que não podemos fazer é continuarmos a ter essa atitude cega e idólatra em relação a ele, compreendendo que se tratou de um ser humano, com seus limites históricos, uma criança sofrida e abusada, com traumas psíquicos nunca tratados.


E o que podemos ainda menos fazer é aceitar os médiuns contemporâneos, que não têm mais a limitação histórica, social e psíquica de 100 anos atrás, e estão em contato com as redes sociais, aptos a se inteirarem das informações e das contrainformações, e mesmo assim assumem atitudes fechadas, conservadoras, apoiando o que há de mais retrógrado na sociedade.

Enfim, na dinâmica da evolução, é sempre melhor estar na ponta da história, sem violência, sem desrespeito a ninguém, mas com firmeza de princípios e visão aberta. Kardec estava – segundo seus próprios estudiosos não-espíritas. E nós, onde estamos?


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