Prostituta.
Santa. Esposa de Jesus. Apóstola. Feminista. Os rótulos usados para definir
Maria Madalena - fruto de interpretações de textos canônicos, de evangelhos
apócrifos ou simplesmente expressões de crenças populares - fazem dela uma das
mais enigmáticas personagens bíblicas.
O filme Maria
Madalena, lança olhar sobre uma das versões da trajetória desta figura
fundamental à história do cristianismo. Na obra dirigida por Garth Davis, ela
aparece como uma fiel seguidora de Cristo. Mais do que isso, uma mulher à
frente de seu tempo, que desafia a sociedade patriarcal da época, contrariando
seu pai ao decidir se tornar uma discípula.
Citada
nominalmente 17 vezes na Bíblia, Maria Madalena, ao que tudo indica, era uma
entre tantas pessoas que se encantaram com as pregações de Jesus e passaram a segui-lo.
A principal pista sobre sua origem está no nome: originalmente, Maria de
Magdala, ou seja, nascida em Magdala, uma vila de pescadores próxima ao Mar da
Galileia, localizada a 10 km de Cafarnaum, a cidade que foi a base de Jesus na
vida adulta.
O primeiro
contato entre eles está narrado no capítulo 8 do Evangelho de Lucas. Cristo
encontra Maria Madalena e expulsa dela sete demônios.
Sete é um
número simbólico e, na Bíblia, significa a totalidade. A partir de então, ela
se torna uma seguidora do pregador. Madalena é citada como uma das mulheres que
testemunharam a crucificação de Jesus e, de acordo com o evangelista Marcos,
ela teria visto onde o seu corpo foi sepultado. A Bíblia relata ainda que ela
acabou sendo a primeira a encontrar o sepulcro de Cristo aberto e, portanto, se
tornou a anunciadora, aos outros discípulos, da ressurreição de Jesus.
A seguir,
todavia, seu nome desaparece do livro sagrado. Nos relatos - presentes em Atos
dos Apóstolos e nas epístolas - dos primeiros anos da Igreja, é como se
Madalena não tivesse existido.
"O
silêncio dos apóstolos trouxe aos exegetas diferentes interpretações e, para o
imaginário coletivo, muitas histórias que ainda hoje pairam sobre a imaginação
de homens e mulheres do mundo cristão ocidental", pontua a pesquisadora
Wilma Steagall De Tommaso, professora da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo e do Museu de Arte Sacra de São Paulo e membro da Sociedade
Brasileira de Teologia e Ciências da Religião.
"Crentes
ou ateus, todos conhecem alguma história sobre Maria Madalena".
Relacionamento
amoroso
Ilustração de 1836 mostra aparição de Jesus a Maria Madalena; ela é citada nominalmente na Bíblia 17 vezes |
Isto porque as histórias são muitas. Um exemplo bastante difundido: a mulher era uma prostituta que, resgatada por Jesus, acabou virando sua amante. Os dois teriam se casado e, quando ele foi crucificado, Madalena esperava um filho dele. Então, ela fugiria para a França, onde daria à luz. Os descendentes dessa linhagem seriam os membros da dinastia Merovíngia, que governou os francos de 478 a 751.
Este enredo
aparece na literatura em O Santo Graal e a Linhagem Sagrada, de
Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln - publicado em 1982.
Um
relacionamento amoroso entre Cristo e Madalena também é narrado tanto no livro O
Segredo dos Templários, escrito por Lynn Picknett e Clive Prince e lançado
em 1997, quanto no best-seller O Código Da Vinci, de Dan Brown. Nestes,
a conspiração envolve o gênio renascentista Leonardo Da Vinci (1452-1519), que
teria retratado Maria Madalena, de forma cifrada, ao lado direito de Jesus em
sua representação da Última Ceia.
No tratado
hagiográfico Legenda Áurea, publicado em 1293, o frade dominicano
Jacopo de Varazze (1230-1298) conta que 14 anos depois da morte de Jesus,
Madalena e um grupo de cristãos acabaram expulsos da Judeia. Embarcados à
força, foram atracar no porto de Marselha, no sul da França. Lá, Maria Madalena
teria pregado e convertido muitas pessoas. Mais tarde, ela se retirou à gruta
de Sainte Baume, onde terminaria se dedicando por 30 anos à penitência e à
contemplação.
Verdade ou
não, o local celebra esta história.
"Nos anos
1950, morei quatro anos no sul da França, onde se encontram a gruta em que se
recolheu Maria Madalena e seu túmulo, na cripta da grande basílica, hoje museu.
Havia uma grande festa provençal em sua honra, no dia 22 de julho",
recorda-se o teólogo Francisco Catão, autor do livro Catecismo e Catequese,
entre outros.
Lendas
As versões
populares sobre quem teria sido Madalena são muitas. Há quem acredite que ela
tenha sido uma mulher que decidiu fugir com um soldado romano. Depois de um
tempo, ele a abandonou e ela virou uma prostituta. Foi quando se encontrou com
Cristo e passou a ser sua seguidora. Também há a lenda de que ela tenha sido
uma aristocrata, herdeira de um castelo na região de Magdala. Vivia numa vida
de luxúria até conhecer Jesus e passar a segui-lo.
Segundo a
Bíblia, o primeiro milagre realizado por Cristo teria sido, em uma festa de
casamento, transformar água em vinho. A identidade dos noivos não é revelada.
Há quem diga que o matrimônio era entre Maria Madalena e João Evangelista. Por
essa versão, entretanto, o noivo acabaria se encantando com o gesto de Jesus -
e abandonado o casamento para se tornar discípulo. Deixada só, Madalena
acabaria vivendo como prostituta e, muito tempo depois, encontrado Jesus
conforme está nos evangelhos.
Força da
mulher
Uma das
teorias atribui ao machismo a desconstrução moral de Maria Madalena. Isto
porque ela teria tido um papel muito importante nos primeiros anos do
cristianismo, algo semelhante ao de Pedro - considerado como o primeiro papa da
Igreja Católica, o fundador do catolicismo.
Mas quando a
Igreja se tornou religião oficial de Roma, teve de dar uma atenuada nesses
aspectos, por conta do machismo do império.
"Maria
Madalena é uma figura forte desde o início do cristianismo. Mas, em uma
sociedade patriarcal, em que o Jesus ressuscitado apareceu a uma mulher em
primeiro lugar, confiando a ela a missão de anunciar aos apóstolos a sua
ressurreição - a mais alta missão possível! - foi um problema para os homens de
seu tempo", disse a historiadora Lucetta Scaraffia, que há décadas estuda
a importância da mulher na tradição cristã, em entrevista publicada semana
passada no L'Osservatore Romano.
Mais do que os
quatro evangelhos canônicos - de João, Marcos, Lucas e Mateus -, muitos
evangelhos ditos apócrifos, não reconhecidos pela Igreja Católica, tratam da
vida de Maria Madalena - e são fonte de muitas das teorias sobre ela que
sobreviveram ao tempo.
Se nos
evangelhos oficiais seu papel é restrito a apenas uma entre tantos seguidores
de Cristo, nos apócrifos Maria Madalena é retratada como alguém próxima do
mestre, uma sábia que gozava de posição especial entre os primeiros cristãos.
"A
liderança de Madalena era incômoda em muitos setores do cristianismo dos
primórdios. A escolha dos livros que formam o Novo Testamento se deu num
cenário em que se procurava sufocar as lideranças femininas existentes nas
comunidades cristãs", afirma o teólogo Pedro Lima Vasconcellos, professor
da Universidade Federal de Alagoas e autor do livro O Código da Vinci e
o Cristianismo dos Primeiros Séculos, para explicar por que ela é retratada
nos apócrifos de uma maneira diferente dos evangelhos canônicos.
No Evangelho
de Tomé, ela aparece em um diálogo com Pedro no último dos 114 ditos que essa
obra atribui a Jesus. E mostra que havia uma Igreja dividida entre essas duas
lideranças.
"Simão
Pedro disse a eles: 'Maria tem de nos deixar, pois as mulheres não são dignas
de viver'", diz o trecho. Na sequência, Jesus responde: "Eis que eu a
guiarei para torná-la masculina, para que também ela se torne um espírito
vivente, como vós, que sois homens. Pois toda mulher que se fizer homem entrará
no Reino dos Céus".
Uma das
intepretações aceitas para esse diálogo que hoje soa esquisito vem do
pesquisador Dale Martin, especialista em Religião da Universidade de Yale. Para
ele, o texto se refere a uma crença da época de que a capacidade de procriar,
inerente às mulheres, era algo ruim.
Já no
Evangelho de Maria, ela é quem anima e encoraja os apóstolos temerosos das
perseguições daqueles primeiros tempos do cristianismo. E Pedro reconhece sua
importância. "Irmã, sabemos que o Salvador te amava mais do que às outras
mulheres. Dize-nos as palavras do Salvador que recordas, aquelas que conheces e
nós não conhecemos, já que não as ouvimos", afirma ele.
Entre 2015 e
2016, a pesquisadora Eleonora Graziani utilizou este evangelho para demonstrar
"a autoridade da voz feminina na Igreja primitiva", quando ela
realizava seu doutoramento em Estudos Femininos pela Universidade de Coimbra.
Mas o texto
apócrifo que mais suscita discussões sobre Madalena ter tido ou não um
relacionamento amoroso com Jesus é o Evangelho de Filipe. Primeiro porque o
evangelista diz que uma das Marias que "sempre caminhavam com o
Senhor" era "sua companheira".
Entretanto,
pode ser tudo uma questão de tradução. A palavra original do manuscrito, o
grego koinonôs, apesar de poder se referir a uma esposa, é mais comumente
empregada para designar duas pessoas que compartilham alguma missão ou um
trabalho, como dois parceiros comerciais. Outra passagem do mesmo evangelho,
apesar de repleto de lacunas, diz que Jesus "a beijava com frequência na
sua boca".
Papas
No início, a
Igreja reconhecia sua santidade. Maria Madalena era chamada de "apóstola
dos apóstolos", justamente por ter sido a primeira a atestar a
ressurreição de Cristo - o primeiro registro desta definição é atribuído ao
teólogo Hipólito de Roma (170-236).
Deixada meio
de lado quando a Igreja Católica se tornou oficial do Império Romano - o que
aconteceu no ano 380 -, Maria Madalena acabou relembrada de um jeito meio
torto. Em uma tentativa de tentar convencer os fiéis de que o arrependimento
sincero bastaria para um perdão de Deus, o papa Gregório Magno (540-604)
começou a propagar, em sermões, que algumas passagens da Bíblia se referindo a
mulheres pecadoras - anônimas - estavam, na verdade, tratando de Madalena.
Ou seja:
várias pessoas foram juntadas em um só nome Maria Madalena. Em seu artigo Olhares
de Clérigos - que integra do livro História das Mulheres no
Ocidente-, o historiador francês Jacques Dalerun é categórico ao dizer que
"tal como o Ocidente a venera a santa não existe, enquanto indivíduo, nos
evangelhos".
"A
identidade de Maria Madalena, — de quem Jesus expulsou sete demônios e que foi
testemunha da paixão e da Ressurreição, — fundiu-se com a da pecadora anônima,—
mulher que lavou, ungiu e secou com os cabelos os pés de Jesus na casa de
Simão, o fariseu — e também é identificada com a Maria de Betânia, irmã de
Marta e de Lázaro", resume a pesquisadora Wilma. "Maria de Betânia,
no Evangelho de João, unge também Jesus com um valioso perfume de nardo. A
pecadora anônima que aparece no Evangelho de Lucas; Maria de Betânia e Maria
Madalena passaram a ser consideradas a mesma pessoa."
Pronto, estava
aberta a brecha para que Madalena fosse tachada como prostituta arrependida.
Nas últimas
décadas, esta imagem foi revisada pela Igreja. Em 1969, os predicados
"penitente" e "pecadora" foram excluídos da seção dedicada
a ela no 'Breviário Romano'.
"Isto
eliminou um estigma que havia sido acentuado principalmente por ocasião da
Contrarreforma, quando Maria Madalena teve a importante função de ser o
exemplum. Completamente contra o protestantismo e sua doutrina da graça e da
predestinação, a Contrarreforma enfatizou a doutrina da penitência e do mérito.
Nessa época, séculos XVI e XVII, Maria Madalena exerceu um importante papel
como a pecadora-penitente e como a pessoa que foi favorecida por
excelência", contextualiza Wilma, que está finalizando um livro sobre a
personagem cristã.
Em 2016, papa
Francisco transformou a data de Maria Madalena, 22 de julho, em festa
litúrgica. De acordo com o Vaticano, a decisão foi tomada porque Francisco
gostaria de "assinalar a relevância desta mulher que mostrou um grande
amor por Cristo". Ele voltou a enfatizar seu título de "apóstola dos
apóstolos". O gesto, carregado de simbolismo, repercutiu entre religiosos
e estudiosos.
Professor de
Novo Testamento da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, o filósofo
Régis Burnet afirmou que o ato do papa reconhece "o lugar surpreendente,
para a época, que as mulheres ocupavam junto de Jesus", ao mesmo tempo que
funciona como um "apelo a um maior reconhecimento delas na Igreja de
hoje".
Cultura
Relacionamento
íntimo com Jesus, mas apenas do ponto de vista espiritual. O historiador
britânico Michael Haag procura trazer esta Maria Madalena como a verdadeira, em
seu recém lançado Maria Madalena - Da Bíblia ao Código da Vinci:
companheira de Jesus, deusa, prostituta, ícone feminista. O livro,
portanto, vai na mesma linha do filme de Garth Davis que chega aos cinemas -
com Rooney Mara no papel principal. Mas, assim como a Igreja, o mundo da arte e
do entretenimento também já apresentou várias facetas dessa santa.
Madalena já
apareceu em mais de 30 filmes - quase sempre como uma linda mulher, sedutora.
Em A Última Tentação de Cristo, obra de Martin Scorsese lançada em
1988, ela é vivida pela atriz Barbara Hershey. Que encarna a figura da
prostituta - e, num devaneio épico quando Jesus está na cruz, é vista como
esposa dele e grávida de seu filho. Em A Paixão de Cristo, de 2004,
Mel Gibson traz uma Madalena, vivida por Monica Bellucci, coberta de lama. Em
entrevista da época, Gibson afirmou: "eu joguei lama nela; e quanto mais
lama eu jogava, mais bonita ela ficava".
"Em dois
mil anos de cristianismo, não há outro personagem que tenha estimulado tanto a
imaginação de artistas, escritores e outros estudiosos como Maria
Madalena", acredita Wilma. "Sabemos pouco a respeito dela, no
entanto, a cada período da era cristã criou-se uma Madalena que satisfizesse
suas necessidades e anseios e assim Maria Madalena vem sendo submetida até
nossos dias a uma plástica cultural."
Assim, obras
do Renascimento apresentam uma Madalena símbolo de penitência, humildade e
amor. No Iluminismo, a figura é de uma rameira de coração puro. No fim do
século 19, começa a ser representada de forma muito sexualizada, uma femme
fatale.
Alguns quadros
que a retratam são indispensáveis para qualquer percurso da História da Arte.
Ticiano Vecellio (1490-1576) pintou Madalena Penitente e Noli
Me Tangere. Seu contemporâneo Giampetrino (de quem não se sabe nem sequer o
período exato.
Clique no link abaixo para baixar nosso aplicativo
https://app.vc/o_malhete
Clique no link abaixo para baixar nosso aplicativo
https://app.vc/o_malhete
0 Comentários