Religião as
pessoas podem ter ou não. Já a religiosidade é um elemento estruturante da
existência
Na juventude, o
filósofo Mario Sergio Cortella experimentou a vida monástica em um convento da
Ordem Carmelitana Descalça. Durante três anos, aprendeu a viver em comunidade,
a não ter propriedades, a guardar silêncio. Abandonou a perspectiva de ser
monge – mas não a espiritualidade – para seguir a carreira acadêmica. Hoje, com
55 anos, é professor universitário de educação, conferencista em instituições
públicas, empresas e ONGs, comentarista em vários órgãos da mídia e autor de 10
livros, que prefere chamar de “provocações filosóficas”.
Há uma
pulsão de vida.
A todo instante,
está colocada também a possibilidade de que a vida cesse. Somos o único animal
que sabe que um dia vai morrer. Aquele gato, que dorme ali, vive cada dia como
se fosse o único. Nós vivemos cada dia como se fosse o último. Isso significa
que você e eu, como humanos, deveríamos ter a tentação de não desperdiçar a
vida. Escrevi um livro chamado Qual É a Tua Obra?, que começa com uma frase de
Benjamin Disraeli, primeiro-ministro britânico no século 19. Ele disse: “A vida
é muito curta para ser pequena”.
Como não
apequenar a vida?
Dando-lhe sentido.
A espiritualidade ou religiosidade é uma das maneiras de fazê-lo. A
religiosidade, não necessariamente a religião. Religiosidade que se manifesta
como convivência, fraternidade, partilha, agradecimento, homenagem a uma vida
que explode de beleza. Isso não significa viver sem dificuldades, problemas,
atribulações. Mas, sim, que, apesar disso tudo, vale a pena viver. Meu livro
Viver em Paz para Morrer em Paz parte de uma pergunta: “Se você não existisse,
que falta faria?” Eu quero fazer falta. Não quero ser esquecido.
Fale mais da
diferença entre religiosidade e religião.
Religiosidade é uma
manifestação da sacralidade da existência, uma vibração da amorosidade da vida.
E também o sentimento que temos da nossa conexão com esse mistério, com essa dádiva.
Algumas pessoas canalizam a religiosidade para uma forma institucionalizada,
com ritos, livros – a isso se chama “religião”. Mas há muita gente com intensa
religiosidade que não tem religião. Aliás, em minha trajetória, jamais conheci
alguém que não tivesse alguma religiosidade. Digo mais: nunca houve registro na
história humana da ausência de religiosidade. Todos os primeiros sinais de
humanidade que encontramos estão ligados à religiosidade e à ideia de nossa
vinculação com uma obra maior, da qual faríamos parte.
De onde vem
essa ideia?
Existe uma grande
questão que é trabalhada pela ciência, pela arte, pela filosofia e pela
religião. A pergunta mais estridente: “Por que as coisas existem? Por que
existimos? Qual é o sentido da existência?” Para essa pergunta, há quatro
grandes caminhos de reposta: o da ciência, o da arte, o da filosofia e o da
religião. De maneira geral, a ciência busca os comos”. A arte, a filosofia e a
religião buscam os “porquês”, o sentido. A arte, a filosofia e a religião são
uma recusa à ideia de que sejamos apenas o resultado da junção casual de
átomos, de que sejamos apenas uma unidade de carbono e de que estejamos aqui só
de passagem. Como milhões de pessoas no passado e no presente, acho que seria
muito fútil se assim fosse. Eu me recuso a ser apenas algo que passa. Eu desejo
que exista entre mim e o resto da vibração da vida uma conexão. Essa conexão é
exatamente a construção do sentido: eu existo para fazer a existência vibrar. E
ela vibra em mim, no outro, na natureza, na história.
Existe
também a religiosidade que quer beber diretamente na fonte, que busca a relação
sem mediações com o divino.
O divino, o
sagrado, pode ganhar muitos nomes. Pode ser Deus no sentido
judaico-cristão-islâmico da palavra; pode ser deuses; pode ser uma vibração,
uma iluminação. Independentemente de como o denominamos, há algo que
reconhecemos como transcendente, que ultrapassa a coisificação do mundo e a
materialidade da vida, que faz com que haja importância em tudo o que existe.
Desse ponto de vista, não basta que eu me conecte com os outros ou com a
natureza. Preciso fazer uma incursão no interior de mim mesmo, em busca da vida
que vibra em mim e da fonte dessa vida. É essa fonte que alguns chamam de Deus.
A conexão com essa fonte é aquilo que os gregos chamavam de sympatheia, que
significa simpatia. Trata-se de buscar uma relação simpática com o divino.
Como você
busca essa relação?
De várias maneiras.
Às vezes, na forma de um agradecimento. Às vezes, na forma de um pedido. Às
vezes, por meio de uma oração consagrada pela tradição – porque, como dizia
Mircea Eliade, o maior especialista em religião do século 20, “o rito reforça o
mito”. Às vezes, recorrendo a um gesto espontâneo. Outro dia, eu estava em uma
cidade litorânea, onde iria palestrar. Em frente ao hotel, havia uma praia.
Caminhando descalço sobre a areia, às 5 e meia da manhã, sentindo o sol que
nascia, me veio um forte sentimento de gratidão e rezei, em silêncio, uma
oração, das consagradas. Já ontem, eu estava reunido com a família em volta da
mesa. Diante da cena dos meus filhos com as esposas, novamente senti gratidão.
Ergui a taça de vinho e brindei em agradecimento por aquele momento. Nem sempre
a minha relação é de gratidão. Às vezes, é de apelo. Na crença, verdadeira para
mim, de que a fonte de vida pode reforçar a minha capacidade de viver, eu peço.
Existe,
hoje, um maior impulso para a espiritualidade ou trata-se apenas de mais uma
onda passageira?
Guimarães Rosa
disse que “o sapo não pula por boniteza, pula por precisão”. De acordo com o
headhunter e professor de gestão de pessoas Luiz Carlos Cabrera, a grande
virada no mundo empresarial brasileiro ocorreu, de fato, no dia 31 de outubro
de 1996 às 8h15, quando um avião da TAM, com 96 pessoas a bordo, todos eles
executivos, exceto a tripulação, caiu sobre a cidade de São Paulo. Perdi dois
amigos de infância nesse acidente. Aquele foi um momento de inflexão no mundo
corporativo. Eu compartilho dessa opinião. As pessoas começaram a pensar: eu
podia estar naquele voo e o que eu fiz até agora? Toda a ânsia que caracteriza
o mundo corporativo, focada no lucro, na competitividade, na carreira, começou
a ser relativizada.
Mas existem
também fatores de fundo, que afetam o mundo.
É claro. Um fator,
talvez o principal, foi que o século 20, apostando na ciência e na tecnologia,
nos prometeu a felicidade iluminada e ofereceu angústia. Em prol da
propriedade, sacrificou-se a vida, a convivência, a consciência. O stress
tornou-se generalizado, afetando adultos, jovens e até as crianças. Há uma
grande diferença entre cansaço e stress. O cansaço resulta de um trabalho
intenso, mas com sentido; o stress, de um trabalho cuja razão não se
compreende. O cansaço vai embora com uma noite de sono; o stress fica.
Há uma forte
cultura da pressa e da distração.
A tecnologia nos
proporcionou a velocidade. Mas, em vez de usá-la apenas para fazer as coisas
rapidamente, nós passamos a viver apressadamente. Assim como existe uma grande
diferença entre cansaço e stress, existe também entre velocidade e pressa. Eu
quero velocidade para ser atendido por um médico, mas não quero pressa durante
a consulta. Quero velocidade para ser atendido no restaurante, mas não quero
comer apressadamente. Quero velocidade para encontrar quem eu amo, mas não
quero pressa na convivência. Tempo é uma questão de prioridades. Muita gente
argumenta não ter tempo para a espiritualidade, para cuidar do corpo. E segue
nesse ritmo apressado até sofrer um infarto. Se não for fatal, o infarto
funciona como um sinal de alerta. O dia continua a ter 24 horas, mas quem
sobrevive passa a acordar uma hora mais cedo para caminhar e se exercitar. O
impulso espiritual também é um sinal de alerta. Não há pressa em segui-lo. Mas
cuidado: é muito arriscado adiar indefinidamente para o ano que vem.
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