O Espiritismo tem três vertentes: científica, filosófica e moral ou religiosa, que estão intimamente interligadas.
Essa inter-relação
é mais clara hoje do que no século XVIII, quando predominava com mais força o
reducionismo racionalista e cartesiano de Descartes e, assim, havia uma sede
por separações, classificações e métodos de conhecimento afins, que facilitam a
compreensão, mas, sem uma complexa e dinâmica visão sobre o fenômeno, também
geram diversas confusões.
Claramente, a
vertente moral do Espiritismo, por ser o seu cerne e por exigir menos
conhecimento intelectual no seu entendimento superficial, se desenvolveu muito
mais no Brasil. É preciso estar atento, todavia, para o fato de que o
Espiritismo, tal como codificado por Kardec, não buscava exercer um papel
propriamente religioso.
Kardec afirma, no
Preâmbulo do livro “O que é Espiritismo?”, o seguinte:
“O Espiritismo é,
ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como
ciência prática ele consiste nas relações que se estabelecem entre nós e os
espíritos; como filosofia, compreende todas as consequências morais que dimanam
dessas mesmas relações”..
Como se nota,
Kardec não falava no Espiritismo como religião, situando a sua parte moral
dentro da filosófica, pois, de fato, a moral sempre foi um dos principais
problemas da filosofia, desde os gregos, e assim também o era no século XIX.
Na Revista Espírita
de dezembro de 1868, em transcrição de um discurso intitulado “O Espiritismo
é uma religião?”, Kardec deixa claríssimo que, se definida “religião”, do ponto
de vista filosófico, como aquilo que gera um laço moral entre os homens, o
Espiritismo é uma religião:
“Se é assim,
perguntarão, então o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida,
senhores! No sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos
vangloriamos por isto, porque é a Doutrina que funda os vínculos da
fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas
sobre bases mais sólidas: as próprias leis da Natureza”.
Logo em seguida,
contudo, Kardec explica porque não define, em regra, o Espiritismo como uma
religião:
“Por que, então,
temos declarado que o Espiritismo não é uma religião? Em razão de não haver
senão uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, na opinião
geral, a palavra religião é inseparável da de culto; porque desperta
exclusivamente uma idéia de forma, que o Espiritismo não tem. Se o Espiritismo
se dissesse uma religião, o público não veria aí mais que uma nova edição, uma
variante, se se quiser, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta
sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; não
o separaria das idéias de misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes
a opinião se levantou”.
No item 8, do
Capítulo I, do Evangelho segundo o Espiritismo, Kardec sustenta que a
inteligência humana separou indevidamente ciência como o estudo da matéria e
religião como o estudo do que é metafísico, mas que é preciso religar essas
visões, interpenetrá-las.
O conhecimento é um
só. Quando se diz que é preciso fortalecer o aspecto científico do Espiritismo,
não se quer dizer que ele é mais importante do que o moral, mas que um pilar de
sustentação do mesmo pensamento está mais fraco do que o outro e que o
fortalecimento de cada um depende da solidez do outro.
A difusão da
perspectiva religiosa do Espiritismo pode ser atribuída mais a Emmanuel,
espírito guia de Chico Xavier, do que ao próprio Kardec. Não é à toa que
Emmanuel era um espírito com forte crença no poder da religião e do rigor, o
que provavelmente tem a ver, como causa e efeito, com suas diferentes encarnações
como religioso.
No livro “O
Consolador”, de Chico Xavier, é mencionado que Emmanuel fez a seguinte
afirmação:
“A ciência e a
Filosofia vinculam à Terra essa figura simbólica, porém, a Religião é o ângulo
divino que a liga ao céu. No seu aspecto científico e filosófico, a doutrina
será sempre um campo nobre de investigações humanas, como outros movimentos
coletivos, de natureza intelectual, que visam o aperfeiçoamento da Humanidade.
No aspecto religioso, todavia, repousa a sua grandeza divina, por constituir a
restauração do Evangelho de Jesus-Cristo, estabelecendo a renovação definitiva
do homem, para a grandeza do seu imenso futuro espiritual.
Quando Emmanuel se
referia a essa importância da religião, pelo que se pode entender, talvez estivesse
pensando no mesmo que Kardec quando tratava da relevância do estudo da moral
espírita por meio da filosofia. É preciso, portanto, tomar muito cuidado com
definições e com a atribuição de maior importância a um dos aspectos do
Espiritismo, quando eles, na verdade, estão muito bem interligados.
A religião - tal
como normalmente praticada na Terra, repleta de rituais, proibições e
reprimendas - é criação dos homens, e não de espíritos elevados. O Espiritismo
não tem rituais de batismo, primeira comunhão, casamento, extrema-unção,
adoração, confissão, perdão pela repetição de “x” rezas etc. Aliás, muitas
distorções do Espiritismo, como a visão de culpa, de um Deus que castiga e
tantas outras ainda decorrem da tradição religiosa existente no mundo.
O Espiritismo
também termina se confundindo com as religiões tradicionais por ter como base
os ensinamentos de Jesus Cristo e por muitos dos seus adeptos terem sido
religiosos que se desiludiram com suas respectivas religiões.
Como lembra Haroldo
Dutra Dias, a lei da natureza é uma só. O que se chama de “moral” é apenas
uma forma humana de expressar aquilo que diz respeito ao bom agir, mas é
consequência das mesmas leis que definem, por exemplo, a atração, vista como
uma lei natural. Mas, se agir com amor leva à atração de mais amor e, portanto,
de outros seres humanos dispostos a amar e a serem amados, como separar o moral
do natural, se não for apenas para efeitos didáticos?
Não se percebendo
essas questões e não se aprofundando na intelectualidade científica e
filosófica do Espiritismo, fica muito mais difícil compreender quais são as
leis morais e como segui-las para que se obtenha mais felicidade, pois amor,
humildade e caridade são sentimentos sobre os quais quase todos falam e julgam
ser seus praticantes mais fiéis. A fé, quando não pautada na razão, se torna
guia de menor utilidade, perigosa e pode levar ao fanatismo.
Um dos grandes
méritos do Espiritismo é explicar racionalmente como esses sentimentos se
manifestam em ações e que tipos de ações devem ser tomadas nos mais diversos
contextos, que sugerem muitas vezes a necessidade de uma tomada de posição
complexa em meio a diretrizes aparentemente contraditórias ou paradoxais.
Quanto a ciência e
filosofia, a interconexão delas é tema de estudo antigo fora do Espiritismo. O
reducionismo separou aquele conhecimento mais afirmativo, que se experimenta e
sobre o que se pretende encontrar verdades por meio de teorias testadas,
daquele que é mais questionador, reflexivo, que se testa apenas pela razão e
pela intuição.
No final das
contas, ciência sem filosofia é um conjunto de teorias frias, com pouca
capacidade de trazer o progresso por falta de um profundo questionamento
crítico, e filosofia sem ciência é um conjunto de abstrações soltas, sem grande
aderência à prática, sem experimentação.
Com o intuito de
realizar a tarefa de difusão da Boa Nova, o Espiritismo deve ter muito cuidado
com a tradição religiosa humana, servindo às religiões como uma ferramenta de
sua reconstrução, como a grande ciência (e filosofia) de compreensão das leis
menos explícitas da natureza (naturais e morais) por meio do estudo técnico,
cuidadoso, metódico dos fenômenos espirituais e dos ensinamentos obtidos por
meio deles.
Muitos indivíduos
veem a religião com preconceito e, por estarem apegados à matéria, ainda que
uma boa parte tenha predisposição para desapegar dela se receberem os
incentivos adequados, não dão importância a ensinamentos morais, especialmente
se pautados em Jesus Cristo e outros seres ligados às religiões tradicionais,
que não estejam suportados por argumentos bastante racionais.
Outras pessoas são
muito apegadas a uma religião específica e têm dificuldades de serem atraídas
por outra doutrina predominantemente religiosa.
Para cumprir a
tarefa dada por Jesus aos espíritas de difundir a Boa Nova, que é claramente
lembrada em toda a obra de Kardec, sobretudo no Evangelho segundo o
Espiritismo, preciso desenvolver melhor as vertentes científica e
filosófica do Espiritismo, buscando conversar com cada pessoa conforme a sua
bagagem moral e intelectual.
Com mais suporte
científico e filosófico, torna-se mais fácil o trabalho nos centros espíritas,
pois estarão mais bem subsidiados em estudos cuidadosos, aprofundados, que
sigam os métodos definidos por Kardec e, quem sabe, até possam avançar neles,
pois é preciso lembrar que, de lá para cá, se passaram mais ou menos 160 anos e
o conhecimento progrediu enormemente.
Os espíritas não
podem se prostrar como adoradores do codificador. Como tudo progride, o
Espiritismo também deve progredir. Essa era a vontade do próprio Kardec, como
ele deixa claro em diversas passagens. Seguem, então, algumas propostas para os
seus desenvolvedores e difusores.
É preciso falar
mais sobre Espiritismo para quem não é espírita, utilizando, como propunha
Kardec no início do Livro dos Médiuns, o discurso mais apropriado para cada
tipo de destinatário. Pode ser mais difícil convencer um fanático religioso a
mudar de religião do que a acreditar em fenômenos suportados pela ciência,
assim como pode ser mais fácil convencer um religioso cristão com coração
aberto e pouco conhecimento científico por meio de aspectos morais e da
doutrina de Jesus, com base em argumentos racionais, do que por engenhosas
teorias científicas, como a quântica.
Os espíritas devem
falar menos em “doutrina”, uma palavra que provavelmente fazia muito mais
sentido na França à época de Kardec do que hoje no Brasil e mesmo em outros
países. O termo “doutrina”, salvo em raros círculos, é pouco utilizado na
Língua Portuguesa e mesmo na Língua Inglesa, e, ainda pior, costuma se associar
a uma ideia de doutrinação, o que tende a “fechar” o destinatário da mensagem.
Seria mais
convincente que se falasse em Ciência Espírita, como o próprio Kardec não
cansava de repetir e que não é nenhum exagero.
A má definição do
que seria “ciência” tem gerado confusões nas últimas décadas. Os economistas,
por exemplo, reconhecendo seus erros e dos seus colegas, têm dito que a
Economia não deve ser tida por uma ciência, uma vez que não observa fatos
naturais.
Por usar uma
definição muito estreita de ciência, vem-se excluindo os diversos sistemas de
conhecimento do seu âmbito. A ciência não é apenas aquela dos experimentos
físicos e químicos. Essa é uma noção limitada que foi difundida na sociedade
humana ocidental a partir, por exemplo, de personagens de filmes, da literatura
e até de quadrinhos, como o Professor Pardal.
Como muitos estudos
científicos desaguam em tecnologias, há também uma confusão de que toda ciência
deve levar à construção de algo. São visões limitadas da ciência, e, se assim
alguns quiserem entendê-la, isso não significa que todos os demais devem
segui-los.
Mesmo tal visão
prevalecendo, não seria o fato de ter ou não o nome de ciência o que faria o
Espiritismo, em sua essência, mais ou menos importante. No entanto, o efeito
retórico de ser uma ciência ajuda a convencer muitas pessoas.
A ciência foi
criada para se distinguir do estudo leigo e do misticismo da Idade Média. Daí
porque é difícil aceitar como científico um conhecimento sobre aquilo que é
completamente desconhecido pela maioria dos homens, tido por místico, como no
caso do Espiritismo.
Ela busca criar um
sistema composto por especialistas que usam métodos para chegar a teorias a
serem testadas por eles mesmos e por outros especialistas, procurando sempre o
progresso no conhecimento moral e intelectual. A ideia de que a ciência busca
chegar a verdades é antiquada. Ela apenas propõe hipóteses, as testa, fica com
elas ou descarta. Esse processo é contínuo.
Allan Kardec utilizou
o método de observação dos fatos espíritas, realizando experimentos em diversas
cidades diferentes, de distintos países, na América e na Europa, seja
pessoalmente, seja por correspondência com outros pesquisadores e médiuns.
Os espíritas
precisam retornar com esse tipo de estudo e difundi-lo pelo mundo com o uso da
internet. Dever-se-ia criar uma rede de interação para trocas de informações
sobre pesquisas a serem realizadas no máximo de países e definir alguns
“atualizadores da codificação” que possam atualizar os ensinamentos dos séculos
XIX e XX para as necessidades do mundo e da racionalidade do século XXI.
Kardec viveu em um
momento no qual o conhecimento humano era completamente diferente de hoje. O
pensamento moderno reducionista, dicotômico e buscador de verdades predominava
naquela época. Hoje já vige um pensamento chamado por muitos de pós-moderno,
que é complexo, transgressor de dualidades e que sabe serem as verdades
fugazes, se é que se deveria ainda falar na obtenção delas enquanto seres
encarnados nesse estágio de evolução.
Os espíritas
deveriam perguntar aos bons espíritos, por meio de médiuns em dezenas de
lugares, por exemplo: o que é a verdade? A Verdade, com inicial maiúscula, de
que falam os espíritos é a mesma verdade de que falam os homens sobre os fatos?
Ela é alcançável pelos homens nesse estágio? Como diversas ideias do
Espiritismo são paradoxos, a exemplo de as pessoas nascerem com um programa,
mas terem livre arbítrio, é preciso desenvolver um raciocínio complexo para ser
um espírita no século XXI? O termo complexidade é utilizado pelos espíritos
superiores como um tipo de pensamento mais evoluído? Ciência, filosofia e
religião são aspectos dissociáveis? Como eles se interajudam?
É possível se
realizar centenas de novas perguntas aos espíritos com base no pensamento
humano atual, realizando uma espécie de atualização do brilhante trabalho
realizado pelo codificador e demais espíritas nos séculos XIX e XX. Parece ser
chegada a hora de a Ciência Espírita tomar de vez espaço nos lares e nos
corações de toda a humanidade.
Para tanto, é
importante um novo giro do Espiritismo e sua ampla difusão, o que poderia seria
encabeçado, por exemplo, por Divaldo Franco, enquanto coordenador de um grupo
de médiuns a serem estudados juntamente com os ensinamentos dos espíritos que
se manifestam por meio deles, e por Haroldo Dutra Dias, enquanto coordenador de
um grupo de pesquisadores científicos.
A difusão do
Espiritismo é importante não quanto religião no seu sentido mais comum, mas por
ser um conjunto de informações importantíssimas para elevar a qualidade da
vibração dos seres humanos, para ligá-los no Bem, retirando-os da depressão,
dando-lhes energia, impedindo suicídios etc. Como uma típica ciência, o
Espiritismo informa e ajuda a solucionar problemas graves da vida humana. É uma
poderosa ferramenta de conhecimento para a mudança moral e vibratória de que o
mundo tanto carece.
Obs.: alguns
colegas questionaram o fato de essa ser uma opinião do autor, e não dos
espíritos, que têm se focado muito mais nos aspectos morais do que nos
científicos. O autor responde que diversas obras de Emmanuel, André Luiz e
outros espíritos são muito científicas. O próprio Kardec, escolhido para
codificar o Espiritismo, era predominantemente homem da ciência, ateu até os 50
anos e, assim, nada religioso. Repita-se que fortalecer o pilar científico não
é deixar o moral de lado, pois eles se complementam, não brigam. Lembre-se que,
segundo Kardec, em A Gênese[9] quando uma noção do Espiritismo contradisser a
da ciência, deve-se ficar com esta última:
“55. Um último
caráter da revelação espírita, a ressaltar das condições mesmas em que ela se
produz, é que, apoiando-se em fatos, a doutrina tem que ser, e não pode deixar
de ser, essencialmente progressiva, como todas as ciências de observação. Pela
sua substância, alia-se à ciência que, sendo a exposição das leis da natureza,
com relação a certa ordem de fatos, não pode ser contrária às leis de Deus,
autor daquelas leis. As descobertas que a Ciência realiza, longe de o
rebaixarem, glorificam a Deus; unicamente destroem o que os homens edificaram
sobre as falsas ideias que formaram de Deus.
O espiritismo,
pois, estabelece como princípio absoluto somente o que se acha evidentemente
demonstrado, ou o que ressalta logicamente da observação. Entendendo-se com
todos os ramos da economia social, aos quais dá o apoio das suas próprias
descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer
ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de verdades práticas e
abandonado o domínio da utopia, sem o que o espiritismo se suicidaria. Deixando
de ser o que é, mentiria à sua origem e ao seu fim providencial. Caminhando de
par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas
lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria
nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará”.
Agradecimentos a
Marcília Brito, Fábio Roque Araújo e Laíze Lantyer pelos comentários ao texto.
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