João Céu e Silva - Fonte: Diário de Notícias (*)
Os peregrinos que se deslocavam a Fátima queriam trazer a melhor lembrança: uma 'selfie' na companhia dos três pastorzinhos |
O anúncio colocado
no Diário de Notícias pelos espíritas previa as aparições de Fátima. Os
historiadores especialistas na I República Fernando Rosas e Filipe Ribeiro de
Meneses comentam.
A publicação, há
cem anos e um dia, de um anúncio no Diário de Notícias, que alertava para a
importância do dia 13 de maio de 1917, que calhava dois meses e três dias
depois da edição do jornal, surpreendeu ontem todos os que têm, ou não, que ver
com as aparições da Cova da Iria. O Santuário de Fátima não reagiu à
publicidade paga que saiu impressa na nona coluna da página 4 daquele dia, além
do que já dissera.
Os teólogos
portugueses também não mostraram vontade de comentar a curiosidade. Os historiadores
que se dedicam a essa época referem, numa única voz, a situação como uma
"coincidência". Os atuais responsáveis pelas casas espíritas que
puseram o anúncio neste jornal ficaram espantados com o que os seus
antepassados previram. Os leitores crentes, por seu lado, permaneceram iguais
nas suas convicções sobre os momentos sobrenaturais que deram início a uma
peregrinação quase centenária e que supera anualmente os seis milhões de
pessoas vindas de todo o país e do mundo até ao recinto conhecido como a Praça
Branca, em oposição à Praça Vermelha de Moscou.
A grande questão
que o anúncio coloca é a do seu significado. O título tinha um número
enigmático, 135917, que só posteriormente seria entendido como sendo o dia da
alegada primeira aparição de Nossa Senhora aos três pastorzinhos enquanto o
rebanho dos pais pastava, na região de Ourém.
Quanto ao texto do
anúncio, maior foi a estranheza: "Não esqueças o dia feliz em que findará
o nosso martírio. A guerra que nos fazem terminará." A interpretação que
reúne mais unanimidade sobre esta frase é a de se referir ao fim da Grande
Guerra, situação que só se verificará um ano depois, em 1918.
Nada que seja um incômodo, afinal, Nossa Senhora enganou-se na previsão durante a terceira
aparição, já que terá "dito" à vidente Lúcia que estava para breve. O
erro foi corrigido posteriormente, mas não eliminou o facto de a guerra ser a
principal essência da Mensagem de Fátima quando essa parte do Segredo foi
revelada em Memórias da Irmã Lúcia.
Daí que juntar o
teor do anúncio publicado há um século na edição do DN e as aparições de Fátima
tenha sido um passo para os inúmeros espíritas, que nesses anos recebiam do
Além mensagens focadas no conflito e na conturbada realidade política e social
portuguesa. Que eram muitos, pois o espiritismo era moda nos países europeus no
pós-guerra, fruto da grande quantidade de vítimas mortais provocadas pela
Grande Guerra, e encontravam resposta nestas comunicações com os mortos.
Aliás, na
"acta" que registra a sessão espírita de 7 de fevereiro de 1917, em
que Stella Matutina revela o conteúdo da mensagem que será transformada em
anúncio a um dos presentes, que logo pede lápis e papel para a registar
conforme a regra mediúnica, escrita da direita para a esquerda, em que fica a
indicação de que "se tomasse nota da opinião da Igreja Católica, para não
haver no futuro dúvidas sobre aquela douta opinião". Foi o irmão Carlos
Calderon, um famoso músico e maestro à época e um dos membros mais importantes
do centro espírita lisboeta, quem ficou encarregado de providenciar a
publicação do anúncio e de "seguir com a máxima atenção o desenvolvimento
deste assunto, coligindo todos os dados, artigos, etc., que possam conduzir-nos
à verdade".
Se os
acontecimentos de Fátima deram razão à importância daquela data para a Igreja
Católica e ficaram para uma história já centenária, o mesmo não se verificou
com a maior parte da documentação que registava aquelas sessões espíritas, pois
na década de 1950 as autoridades desmantelaram as casas espíritas em todo o país
e confiscaram ou destruíram todos os bens.
Restam os anúncios
nos jornais sobre a data que Stella Matutina terá ditado a vários espíritas,
como os da famosa casa na Rua da Picaria no Porto, em que se referia:
"Hade dar-se um facto, a respeito da guerra, que impressionará toda a
gente." Cujos membros enviaram para o JN num postal e que foi considerada
como "revelação sensacional", conforme titularam os redatores numa
notícia. Também aqui se antecipava a importância do dia 13 de maio de 1917,
situação ainda repetida em mais dois outros jornais, Liberdade e O Primeiro de
Janeiro.
Várias
mensagens do Além
Se os historiadores
recusam qualquer validade histórica aos anúncios que as casas espíritas
publicavam na imprensa nacional, o mesmo não acontece com os sucessores de quem
os colocou há um século no DN e noutros órgãos. É o caso de Manuel Costa,
primeiro secretário da Federação Espírita Portuguesa, que considera a
antecipação prevista no anúncio como algo normal entre os seus: "Não é
nada de estranho, estas premonições já aconteceram em muitas outras situações.
Posso referir que em relação ao primeiro Presidente da República, Manuel de
Arriaga, também foi feita essa premonição a 11 de fevereiro de 1882, numa
reunião espírita em Lisboa. Estamos a falar do século XIX, muito antes do fim
da monarquia. Aliás, esse mesmo espírita também revelou que iria ser implantada
a República em Portugal, num tempo em que os republicanos não eram assim tão
numerosos; tal como o regicídio do rei D. Carlos, que foi previsto por uma
médium que veio do Brasil para dar indicações claras ao rei de que iria ser
assassinado. Na altura, infelizmente, ninguém acreditou."
O DN consultou a
edição de A Capital referida por Manuel Costa e confirma-se que está noticiada
na primeira página de 4 de outubro de 1913, documentando a publicação, três
décadas antes, de um opúsculo em que se anunciava que "o Sr. Dr. Manuel de
Arriaga já foi indicado pelos espiritistas para primeiro Presidente da
República Portuguesa!" Os redatores comentaram: "A revelação é
curiosa, como o leitor não deixará de concluir."
Se os leitores
atuais não confiam nestas previsões mediúnicas, Manuel Costa contrapõe que se
deve à dificuldade em compreender certas dimensões do homem que, refere, a
"própria física quântica explica cada vez mais. Somos muitas vezes
catalogados como lunáticos, mas é a ciência mais avançada que mostra o
contrário". Quanto à origem destas comunicações, diz: "Essa é uma
longa história e difícil de assimilar para quem não tem noção do que se está a
falar."
Sobre a falta de
credibilidade do espiritismo hoje, Manuel Costa lamenta que não se queira saber
o futuro: "Muitas vezes com contornos muito definidos, como foi o caso da
comunicação de Fátima. Agora, com o materialismo da sociedade, pouco nos preocupa
uma sociedade mais iluminada."
No que respeita à
Igreja, garante que "há dentro dela imensos sacerdotes que estão
identificados com a fenomenologia mediúnica e com o que se passa a nível
espiritual". Sobre a interpretação dos acontecimentos de Fátima, explica
que são "um facto mediúnico semelhante ao que todos os dias se passa nas
nossas casas espíritas". Ressalva: "A envergadura do espírito de
Maria de Nazaré, muito acima da média, é que não se apresenta a qualquer
um."
(*) Matéria publicada no Diário de Notícias (Portugal) no dia 11 de março de 2017
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