Por Juliana Sayuri - Do TAB, em Matão (SP)
Era, dizia-se na rádio, "um pequenino vilarejo, cercado de gragoatãs, guabirobas, indaiás, joás, ingás, marias-pretas, ariticuns, cobras, onças, macacos e mata virgem, com perobeiras, jequitibás, embaúbas, cabreúvas, paus d'alho, cedros, jacarandás e uma imensidade de árvores seculares, servindo de trono às aves canoras, no despertar das madrugadas e cerrar das Aves-Marias".
Era assim a vila do Senhor Bom
Jesus das Palmeiras, a atual cidade de Matão, no interior de São Paulo.
Schutel, um jovem farmacêutico carioca, saiu do Rio de Janeiro em busca de ares
mais tranquilos — e mais distantes da tuberculose, a infecção que rondava a
capital à época. Passou por Piracicaba, Itápolis e Araraquara até se instalar
no vilarejo, em 1895.
Ele abriu a farmácia de esquina
no centro da vila. Ao redor, construiu casinhas de madeira para abrigar
hansenianos (à época estigmatizados como "leprosos") e internos
(tidos como "loucos" por outras instituições). "Tratava todo
mundo, inclusive quem não tinha condições de pagar", conta Lúcia Helena
Marchesan, 67, no endereço onde um dia viveu o boticário que ficou conhecido
como "o pai dos pobres de Matão".
Lúcia é quem hoje abre as
portas da construção centenária, que foi convertida no Memorial Cairbar Schutel
no fim de 2013. Fechado devido à pandemia de covid-19, o memorial reabriu
recentemente a visitantes, mediante agendamento prévio.
A poucos passos da farmácia, a
casa amarela abriga antigos frascos de remédio, fotografias, documentos
oficiais da cidade, panfletos, uma Bíblia rara de 1832, uma caderneta de
identidade da Associação Paulista de Imprensa, uma máquina de escrever Royal
10, livros que o carioca escreveu e cartas que trocou com intelectuais ingleses
e franceses interessados em fenômenos espíritas.
O acervo dá pistas das
diferentes facetas de Schutel: além de farmacêutico, foi um dos responsáveis
por elevar o vilarejo à condição de cidade, em 1898, e ocupou o cargo de
intendente de Matão (o equivalente a prefeito nos dias atuais); católico,
abraçou o espiritismo e se tornou um de seus maiores propagadores, às vezes
tratado como "bandeirante" espírita: fundou o Centro Espírita Amantes
da Pobreza e o jornal O Clarim em 1905, ajudou a construir o Hospital de
Caridade em 1913, iniciou a Revista Internacional de Espiritismo em 1925 e fez
conferências de rádio sobre a religião na década de 1930.
'Amantes da pobreza'
"Cairbar foi
pioneiro", diz Cássio Leonardo Carrara, 34, autor de "O Som da Nova
Era", livro-reportagem que trata da trajetória do jornal mensal O Clarim.
De Mineiros do Tietê (SP),
Cássio cresceu ouvindo as histórias de Schutel na sua família, espírita desde
os tempos de seu bisavô. "Lembro de meu pai lendo 'E, para o resto da
vida' [livro de Wallace Leal Valentin Rodrigues] para nós, lembro da revista e
d'O Clarim entregue em casa", conta.
Cássio se mudou para Matão na
adolescência e depois cursou jornalismo na Uniara (Universidade de Araraquara),
campus a 30 km dali. Desde 2011 trabalha como jornalista na Casa Editora O
Clarim, que até hoje publica o jornal O Clarim e a Revista Internacional de
Espiritismo — eles não divulgam a tiragem. A edição de junho da revista, por
exemplo, discute como conflitos íntimos impactam na sociedade através da
intolerância e da violência. "Cairbar é uma referência intelectual. O
espiritismo não tem estrutura hierárquica, não tem líder", diz o escritor.
Antes dele, quem por muito
tempo liderou a produção foi o editor Apparecido Belvedere, 94, atualmente
afastado por motivos de saúde. Na juventude, Belvedere frequentava o Centro
Espírita Cairbar Schutel no Itaim Bibi, na zona sul da capital paulista, e
visitava Matão todo agosto, mês de aniversário d'O Clarim. Na década de 1970,
mudou-se para lá e, até pouco tempo, fazia trabalho voluntário na editora.
"Tudo é voluntário",
diz Lúcia Marchesan, atual vice-presidente da casa, que busca se manter com a
venda de livros e assinaturas, além de doações. A certo ponto, conta Cássio
Carrara no livro "O Som da Nova Era", o Centro Espírita Amantes da
Pobreza não inspirava muita confiança em bancos e empresas — "se são
amantes da pobreza, talvez acabem não tendo como honrar seus compromissos
conosco", pensava-se
Na verdade, a expressão queria
dizer amor aos pobres, a caridade com quem necessita, devido a pobreza não só
material, mas intelectual, sentimental e de espírito. Dada a confusão,
decidiu-se em 2003 rebatizar a instituição como Centro Espírita O Clarim.
Debaixo do guarda-chuva do centro estão a Casa Editora O Clarim e o Memorial
Cairbar Schutel.
O centro possui um auditório
com bancos de madeira cedidos pelo antigo cinema da cidade, uma livraria e
salas para reuniões mediúnicas, estudos e evangelização, frequentadas por cerca
de 30 pessoas. A editora corresponde a uma pequena redação — em 2010, os
dirigentes decidiram desmontar o parque gráfico e terceirizar a impressão, pois
o maquinário já estava defasado e seria caro demais modernizá-lo
'Sou imortal'
Mário de Andrade (1893-1945)
escreveu o manuscrito de "Macunaíma" na chácara Sapucaia, na cidade
de Araraquara, em 1926. Na época, o autor modernista visitou Matão.
"Quando por lá passou, foi à farmácia e visitou as instalações da gráfica
do jornal O Clarim, e parece não ter desgostado daquela que descreveu como
'cidadezinha progressista'", contou no Facebook o crítico literário Paulo
Franchetti, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
A farmácia foi um ponto de
encontro intelectual e cultural da cidade, considera o crítico matonense. Após
a morte de Cairbar Schutel, a drogaria passou para Alberto Benassi, conhecido
como Seu Albertinho, que por muito tempo preservou a estrutura tal qual a
original do boticário, com armários e balcões de madeira. Seu Albertinho
faleceu recentemente e no endereço se instalou uma filial da franquia
Multidrogas.
Foi nos tempos de farmácia que
Schutel se tornou espírita, enquanto buscava respostas sobre seus sonhos: órfão
na infância, o jovem farmacêutico vinha sonhando constantemente com os pais.
Primeiro procurou um padre, que lhe sugeriu deixar a história do além pra lá.
Passou então a buscar outras fontes de informação, juntando-se a amigos em
sessões de tiptologia, experiência que os espíritas realizam com mesas
giratórias.
Para espíritas, a morte não é o
fim: todos teríamos vidas passadas e as reencarnações seriam oportunidades para
melhorarmos, evoluirmos. A inspiração vem do autor francês Allan Kardec
(1808-1869), que "codificou" O Livro dos Espíritos, em 1857 — 18 de
abril, data de lançamento do livro, foi escolhido como Dia Nacional do
Espiritismo, instituído pelo Congresso e publicado no Diário Oficial de 31 de
maio. No Brasil vive o maior contingente de espíritas kardecistas do mundo, com
cerca de 3,8 milhões de adeptos, segundo os dados mais recentes do IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Cairbar Schutel foi enterrado
no cemitério de Matão. "Vivi, vivo e viverei, porque sou imortal",
diz sua lápide. A frase teria sido ditada pelo editor e psicografada pelo
médium paulista Urbano de Assis Xavier (1912-1959), seu discípulo. Do lado
"de lá" é difícil dizer, mas do de cá sobreviveu seu legado:
influente até hoje, ele dá nome a diversos centros espíritas, hospitais,
centros de assistência, abrigos, avenidas e ruas Brasil afora.
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