por Dora Incontri
Ultimamente tem vindo à público uma série de
desconstruções de grandes
personalidades, lançando sombras sobre pessoas respeitáveis e veneradas
universalmente por multidões. Fala-se que Gandhi tinha uma homossexualidade mal
resolvida e que oprimia a mulher, que Madre Teresa de Calcutá era sádica e não
dava remédios e analgésicos para seus doentes e moribundos, que Martin Luther
King era mulherengo e traiu Coretta, a esposa, que Viktor Frankl foi
colaboracionista no nazismo, que Kardec era racista – entre outras tantas
acusações a várias outras personalidades.
A questão me interessa particularmente por
dois motivos: primeiro porque, como muitos sabem, dirijo uma série pela Editora
Comenius, intitulada Grandes Pessoas, para crianças, que são justamente livros
para falar de personalidades de diversas áreas, várias religiões e diferentes
épocas, mas que têm em comum o fato de terem sido pessoas com um trabalho
importante para a humanidade, com projetos de vida relevantes, que tiveram um sentido
existencial e, por isso, podem inspirar positivamente as novas gerações. Então,
a pergunta é: podemos de fato apresentar às crianças essas biografias
inspiradoras, se os biografados tinham tais fraquezas? E será mesmo que tinham?
O segundo motivo porque o tema me interessa é
porque estou atualmente começando a fazer uma costura interna entre a minha
visão espírita, reencarnacionista, evolucionista e os dados que mais de 100
anos de Psicanálise nos apresenta a respeito do funcionamento psíquico do ser
humano.
Como sempre num blog, esse é um artigo rápido
e vai apenas tocar de leve em assunto tão vasto e complexo.
É preciso de início abrir um parêntese: será
sempre verdade o que se diz como forma de desconstrução de pessoas veneráveis?
Como saber se é verdade ou não? Às vezes, é fácil de se verificar; outras
vezes, difícil; e outras ainda, impossível. Hoje, somos bombardeados por
infinitas informações, de fontes divergentes e ficamos confusos sobre o que é
verdade e o que é mentira (o pior é que muitos não ficam confusos e
simplesmente passam adiante e repetem coisas sem se certificarem se a fonte é
confiável ou não e vão disseminando mentiras). Há sites e pessoas inclusive
especializadas em criar falsas notícias e espalhar ideias errôneas, movidas
pelos mais diversos interesses. Mesmo antes da internet já havia essa atitude.
Por exemplo, recentemente foram liberados documentos do FBI nos Estados Unidos,
que mostram uma campanha de calúnia e difamação tramada para acabar com a
imagem de Martin Luther King. Ora, havia um interesse explícito em acabar com a
imagem dele, antes de assassiná-lo.
Então, para se começar a verificar se algo
pode ser provável ou não, é preciso saber: quem está falando isso? É gente
interessada em denegrir a imagem da pessoa em questão? Há alguma motivação para
que se fira a reputação desse alguém?
Mas não são apenas pessoas interessadas em
caluniar de que devemos desconfiar. As ideologias também podem influir na
descrição da pessoa. Vejamos: não se pode confiar no que um anticomunista
ferrenho diz sobre um Che Guevara. Mas também é preciso dar descontos do que um
comunista dirá a respeito dele. O primeiro fará dele um monstro, o segundo, um
grandioso herói.
Da mesma forma, a Igreja Católica faz um
trabalho de santificação de pessoas que se destacam na sua história e esse é
muitas vezes um processo de invenção de supostos milagres e de escamoteamento
de possíveis fraquezas.
Mas por outro lado, doutrinas materialistas,
entre elas a Psicanálise, podem ter um grau tão grande de pessimismo a respeito
do ser humano que vão achar atrás de qualquer gesto de bondade – sintomas
ocultos de perversidade, narcisismo ou desequilíbrio psíquico. É verdade também
que tais teorias podem desvendar sim problemas por detrás de supostas
santidades…
Outro lado ainda: há que se entender todo ser
humano, dentro de seu contexto, de sua educação, de suas influências culturais.
Então, por mais sinceramente bem intencionado que alguém tenha sido e por
melhor a sua contribuição à história, esse mesmo alguém pode ter cometido,
falado ou escrito equívocos, porque seria quase impossível transcender o
momento histórico naquele aspecto. É o caso de Kardec, que não era racista,
como entendemos hoje – ele se manifesta contra a escravidão, que ainda existia
no Brasil, por exemplo, e nos fornece a maior chave contra racismo, misoginia e
todas as formas de discriminação, dizendo que podemos nascer e renascer em
qualquer etnia, em qualquer cultura, como homens ou mulheres e por isso somos
essencialmente iguais. Mas a “ciência” de sua época – com um viés europeu –
considerava a raça branca superior às demais. E Kardec embarcou nesse etnocentrismo.
Lamentável, mas compreensível, porque todos os europeus pensavam assim, naquele
momento histórico.
Descontando-se assim, as falsas boatarias, as
leituras ideológicas de um lado ou de outro, os contextos históricos a que
todos os seres humanos são condicionados de alguma forma, resta saber: há de
fato pessoas de maior elevação moral, que podem nos servir de inspiração?
Então, temos de avançar mais um pouco num
conceito psicanalítico de Melanie Klein: em nossa primeira fase de bebês,
vivemos, segundo ela, numa posição esquizo-paranóide. Sentimos apenas dois
extremos: ódio cego e amor idealizado, isso em relação ao seio materno, que nos
alimenta. Se me falta, sinto ódio; se me satisfaz, sinto amor. Ora,
considera-se então que o ser humano adulto, que não desenvolveu um ego íntegro,
saudável, pode facilmente retornar a esse psiquismo arcaico, infantil e viver
entre ódios cegos e idealizações não menos cegas.
Pode-se notar que a nossa sociedade é repleta
de pessoas que em dois segundos, fazem essa regressão e ficam possessas de
ódio, contra um suposto objeto mau e noutro momento seguem e se tornam
dependentes e submissas a um suposto objeto sobre-humano, idealizado. Esse
objeto de idealização pode ser um político, um religioso, um artista…
Uma pessoa madura, equilibrada, é capaz de
ter sentimentos e apreciações mais matizadas, mais fincadas no princípio da
realidade.
Então, não vai idolatrar cegamente nenhum ser
humano, porque todos somos seres humanos e mesmo os maiores seres humanos podem
ter suas fraquezas. E nem tampouco vai demonizar nenhum ser humano, porque
mesmo o pior ser humano, tem suas grandezas, tem a sua história, tem as suas
potencialidades e, como dizia Pestalozzi, tem uma parte intocada.
E com tudo isso, sim, podemos amar Teresa de
Calcutá, Gandhi, Kardec, Martin Luther King, Viktor Frankl e apresenta-los às
crianças! Foram pessoas do bem, lutaram por melhorar o mundo, se empenharam
para deixar algo construtivo. Mas saibamos que foram seres humanos como nós e
até Jesus, que considero o mais elevado dos seres humanos, teve seu momento de
fraqueza no horto, pedindo a Deus que afastasse aquele cálice.
Tenhamos pois a suficiente coragem de olhar
os possíveis equívocos e vacilações dos que admiramos, e teremos mais
facilidade de enxergar que podemos alcançá-los na rota, porque temos também as
mesmas potencialidades de ação e desenvolvimento. A idolatria serve apenas para
alimentar nosso comodismo, porque achamos que nossos ídolos são de uma natureza
não-humana e não podemos imitá-los. É também uma falta de caridade e amor com
eles, porque os queremos perfeitos e eles também estão a caminho como nós.
Apenas um pouco mais adiante, talvez! A idolatria está muito longe do amor,
porque exige uma perfeição sobre-humana e se achamos um pequeno defeito naquele
que idolatrávamos, podemos passar rapidamente da adoração ao ódio e à
destruição. O amor ao contrário se inspira no outro, mas o aceita e compreende!
E só o amor nos move sempre para o alto!
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